quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Por uma vez: Não a DELES, mas a NOSSA, a MINHA corrupção

A retidão está na moda. Ao menos é o que o Face me faz pensar. De uns tempos pra cá, todo mundo é justo e detesta corrupção. Em meio a essa onda de honestidade esbravejada sobretudo nos espaços virtuais me pergunto se alguma das pessoas aparentemente tão iradas estaria disposta a abrir mão das incontáveis e pequenas corrupções que (sim!) realiza cotidianamente para poder, depois, se enfurecer com legitimidade.

Mas a moral do brasileiro é ambígua. E já pensei inclusive que essa dupla moral é como um alicerce oblíquo e errado onde nossa cultura se sustenta, não poderia ser de outra maneira: também torta e errada. Porque, pra mim, há um erro radical aqui.

No Brasil, as leis que regem os outros, o Outro, não regem a nós mesmos ou a extensão do que nós somos, nossa família. Assim, nossa dupla moral diz que as leis anticorrupção devem ser válidas e severas contra o presidente, o prefeito da cidade, o diretor da escola, se todos eles NÃO forem membros da minha família; mas devem poupar minha pele e a dos que têm meu sangue.

Porque cada um sozinho pensa assim, e porque cada um no seu íntimo deseja ser vitorioso sobre e contra todos os outros, o Brasil é do jeito que é. Imparcialidade é um nome que brasileiro desconhece. Somos bons com nós e os nossos, maus com os outros; tolerantes com nosso oportunismo – que sequer é pensado nesse termo –, intolerantes com a mínima mácula alheia. Corruptos são os outros. Nossa corrupção se chama defesa. Nós nos defendemos; é isso o que fazemos. "É o único jeito de sobreviver à ganância do Outro", pensamos. "É assim que funciona o sistema" – disse-me um amigo outro dia, a um só tempo vítima e propagador desse detestável funcionamento.

Os políticos corruptos não têm natureza diferente da nossa. Eles cresceram no mesmo Brasil que de algum jeito silencioso nos ensinou que precisamos tirar a máxima vantagem de todas as situações porque há os outros – que estão contra você – e há você.

Logicamente a corrupção dos políticos alcança mais pessoas que a de um cidadão comum. É um mero problema de escala, não de essência. Em essência, ambas são apenas uma. Duvido que muitos dos que se encolerizam virtualmente contra a corrupção do "Outro" entenda isso com o coração e aja, antes de tudo, para minar a SUA desonestidade.

Estou certo de que abandonar nosso – sim, NOSSO – funcionamento corrupto é NOSSA mais difícil e necessária reeducação. Difícil porque a cultura da corrupção é um círculo fechado que ninguém deseja ser o primeiro a romper. O instinto avisa que se recusar a ser corrupto significa morrer vítima da corrupção dos outros. Necessário porque, se os onipresentes gritos anticorrupção forem sinceros, há pelo menos alguns milhões de pessoas insatisfeitas com o atual aspecto do Brasil, de fato nem tão atual assim.

No meu pessimismo eu diria que vencer esse instinto de sobrevivência e ser capaz de exceder nossa cultura da corrupção ao possível custo de “morrer” é quase impossível. Mas insisto, porque não me custa, que entender o sentido da palavra “imparcialidade” e que a nossa corrupção – que chamamos de “defesa” – equivale, sim, em essência, à corrupção dos outros e mesmo à dos políticos já é começar a romper o nojento círculo.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Andaluzia: caminhar e caminhar




Caminho pela Andaluzia e vou entendendo que caminhar nem sempre é o mesmo que caminhar. Ando por uma montanha, das muitas e belas que a paisagem andaluza possui, com meu namorado. Ele leva a mochila com nossa água, comida para a pausa do piquenique, kit simples de primeiros-socorros, nossos telefones e câmeras. Subo montanhas com custo. Culpo minhas pernas magras e sem músculos que tremem para arrastar meu corpo para o alto. Os dois vamos geralmente em silêncio, seja pelo rigor da subida que nos impede de poder falar e andar simultaneamente, seja por entendermos que é melhor assim, mesmo nas descidas, quando já não há tanto esforço físico e poderíamos conversar. É uma solidão a dois, uma solidão que não é má nem incômoda, mas morna e agradável.

No meio desta caminhada, lembro de outras vezes em que caminhei, desta vez no Brasil. Penso particularmente em duas experiências brasileiras, uma no Parque de Sete Cidades, no Piauí; outra em Bonito, no Mato Grosso do Sul. Ambas já aconteceram depois da minha iniciação andarilha na Europa. Como brasileiro, às vezes mesmo eu constituo a regra e, neste caso, descobri na Alemanha que eu – como quase todos os meus conterrâneos – detestava caminhar. Assim, infelizmente, antes da Europa entrar na minha vida, não fui tão bom para ser capaz de concluir que caminhar era algo a ser pensado e feito. Ao caminhar no Piauí ou em Bonito já tinha, portanto, certa experiência europeia para entender como as duas culturas enxergavam esse mesmo gesto. E vi que caminhar no Brasil podia ser algo bem diferente.

Primeiro: não se caminha no Brasil. Logo, quando se caminha se faz algo que é alternativo e especial. As pessoas que decidem fazê-lo – ao menos foi o que minhas experiências me revelaram – se vêem como ótimas, afinal são raras. Vendem uma imagem de consciência ambiental e de estilo de vida saudável. Longe de perceber, no entanto, que consomem a caminhada como o fazem com qualquer outro bem material ou imaterial capaz de somar valor à imagem que desejam vender de si. Pouco interessa a caminhada e o caminhar. Interessa o que ela contribui para o embelezamento e enriquecimento da imagem pessoal. Como fazer academia três vezes por semana ou comer sushi regularmente.

Como não se caminha no Brasil, não se sabe caminhar nem ter olhos para o exterior e a paisagem. Essa talvez seja a diferença mais radical que pude perceber entre europeus e brasileiros: a diferença a respeito da relação com a paisagem exterior, com a natureza. Diferente daqueles, nós brasileiros quase sempre fugimos, sem o saber, claro, de nos relacionarmos com o entorno. A natureza nos parece muito desejável nas imagens das revistas turísticas com seus verdes exuberantes, e o Pantanal exerce um fascínio mítico em muitos de nós. Fascínio porque geralmente permanecerá distante e irrealizável. Na realidade diária, porém, a paisagem natural que nos circunda – talvez mesmo a muitos habitantes do Pantanal – nos exerce pouco ou nenhum apelo, ou sequer é percebida como natureza. Em casos muito mais tristes, mas bastante comuns, em que a natureza passa por um momento no tempo a significar, para o brasileiro, uma evidente oposição entre o meu e o não-meu, entendemos que ela deve ser controlada. E a única forma de controle que conhecemos é a supressão. Todas as vezes em que a natureza deixa de ser apenas inofensiva, de poder ser apenas mentalmente ignorada por nós e passa a significar algum nível de ameaça às coisas que pensamos ser “nossas”, entendemos que é chegado o momento da luta. Uma luta não apenas burra, por não entendermos que o que desejamos dominar também é “nosso”, como injusta e sangrenta, vencida por nós com irrisória facilidade por conta do aparato tecnológico à que apenas nós, humanos, podemos recorrer e o fazemos. Ateamos fogo na colmeia de abelhas se não a desejamos ali debaixo daquela folha de bananeira no nosso quintal; desistimos da mangueira e das mangas por não aceitar dividi-las com os periquitos e cortamos a árvore quando pensamos que eles se aproveitam além da conta das “nossas” frutas; matamos a sucuri que comeu “nosso” bezerro; caçamos e matamos a onça que apenas ainda não fez nada, mas poderia fazer. Penso que nesta reduzida lista encontrada em minhas lembranças pessoais, que eu poderia facilmente estender, a imensa maioria de meus conterrâneos não percebe nada de estranho; não percebe sequer que há algo acontecendo aqui.

Depois há os casos em que a natureza é apenas inócua e pode, assim, ser apenas facilmente esquecida de lado. Nestes casos, agem nossos olhos mentalmente fechados para o entorno. Como já disse, não temos olhos para a paisagem, para os espaços amplos, para o longe. Nossos olhos são para espaços exíguos e fechados, para poucas distâncias, para paredes, para o que é mais nosso, como a sala onde se come, a casa onde se vive ou no máximo o quintal onde se faz a festa no fim de semana. Se viajamos de ônibus, a paisagem que flui na janela pouco nos interessa ou bem menos que a conversa que tentamos manter ao telefone, irritados pelas constantes interrupções na conexão. A paisagem está lá, mas não está porque ela nada significa pra nós. Não a enxergamos. Não sabemos lê-la como o fazemos com uma mensagem no whatsapp. Não sabemos o que fazer com ela nem como reagir.

Por isso na caminhada – essa rara intermitência para o brasileiro onde ele deixa de ignorar ou mesmo suprimir o entorno e deve enxergá-lo e mesmo interagir com ele – a figura do guia surge como quase imprescindível. O guia deseja curar esses olhos incapazes de enxergar as coisas que estão para fora das paredes. Ele diz olhe isto, veja aquilo, fotografe. Sempre as fotos. É estranho, mas sim, é preciso alguém para fazer o caminhante enxergar a natureza. Mais: enxergar que ela pode ser interessante e digna da sua atenção. Mas o guia, quase sempre um pastor charlatão, tampouco entende o silêncio da natureza, e tentará – impulsionado pelo seu espírito raso, o único que possui – conferir-lhe os mais estúpidos significados. Ele diz olhe esta pedra, ela se parece com o trono de um rei. Como se a pedra não pudesse interessar por se parecer simplesmente a uma pedra. Mais fotos. Nem guia nem guiados sabem contemplar ou estar em silêncio. O silêncio os perturba. Assim, esse raríssimo encontro entre o brasileiro e a natureza, que eu penso que devia ser respeitado como uma libertadora possibilidade de se escapar por um breve momento de um mundo histérico e saturado de signos, torna-se mera extensão da habitual e onipresente histeria.

A caminhada se torna um evento, um show, inclusive com animador. A caminhada-show tem um momento preciso para começar e encerrar, e um programa pensado pelo guia com as “atrações” que merecem a atenção. Não há tempo para sair do programa porque a procissão de caminhantes precisa seguir. O que constatei foi que ninguém, afinal, sai do programa porque infelizmente ninguém tem olhos para enxergar além das escolhas filtradas pelo guia. E a procissão segue em meio a muitas selfies vendendo saúde e infindáveis queixas do sol, do suor e da caminhada de duas horas que já seria impossivelmente longa. Assim, a valiosa chance de dilatar a experiência existencial, de saltar a outra chave de funcionamento mais lenta e profunda porque sem o excesso de estímulos/signos é simplesmente lançada ao chão: os caminhantes brasileiros sequer farejam haver um modo mais silencioso e calmo de existir.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Eu e Höfer










 
 
 
Volto da exposição da badaladíssima (pelo menos em território alemão) Candida Höfer - membro da não menos famosa “Escola de Fotografia de Düsseldorf”, na verdade, um “grupo” e não uma “escola” - na mencionada cidade alemã com uma boa sensação de conexão estética entre minhas fotos e as dela: seria eu a Höfer que deu errado?

Tiradas, claro, todas as diferenças técnicas - o aparato de que Höfer dispõe para clicar suas fotos e que, depois, a possibilita imprimi-las em tamanhos imensos com uma resolução impossível de boa - e o tempo que está pressuposto por trás de cada uma das fotos - para, por ex., agendar um horário em que os espaços a serem clicados poderão estar vazios de pessoas e para preparar a iluminação - tiradas, portanto, tais diferenças, o que sobra, na minha opinião, são as semelhanças entre meu modo de fotografar (que se constituiu antes de eu conhecê-la) e o seu: uma obsessão por “limpeza” visual; por lugares vazios de gente; por simetrias perfeitas; por linhas retas e bonitas, fugindo às linhas orgânicas e tortuosas.

Sei, porém, que não sou uma Höfer e isso aqui - se alguém ainda não entendeu - é apenas um gracejo meu, mas foi divertido brincar de Höfer!

As fotos aqui, beeem menores que no museu, abafam meus defeitos técnicos e nivelam minhas fotos com as da fotógrafa. Ou não e sou um iludido?! (medo)

As fotos acima alternam imagens minhas e da alemã, iniciando por uma minha.


domingo, 26 de maio de 2013

Afronta

A f r o n t a
 
 
Pouco antes de sair pra jantar avaliou o dia até ali e admitiu desgostoso que ele devia ter sido melhor. Ao ter esses pensamentos, estava de pé, já vestido, perscrutando sua imagem no espelho do banheiro. Com a mão direita empurrou o cabelo pra trás e manteve os fios sob a palma, revelando a fronte, onde ele examinava, há semanas, confrangido e impotente, o súbito recuo dos pelos das suas têmporas. Sim, era seu dever ter produzido quase artesanalmente um dia especial para o namorado que fazia aniversário. Apenas um dia no ano, era difícil fazê-lo funcionar? Mas as coisas gostam de escapar do controle, suspirou treinando resignação.
 
No começo da manhã, antes que o companheiro saísse da cama, insuflou-se uma energia que ele nunca conhecia assim logo depois de se despertar e, acelerado, deixou o quarto – possuído pela responsabilidade de oferecer ao aniversariante o dia ideal que ele merecia – e foi arranjar na mesa da sala de jantar uns poucos presentes, na verdade, apenas o seu e o da sogra, que chegara dois dias antes pelo correio. Foi então que o dia começou a fluir sozinho, fora de qualquer agenda ideal que ele pudesse imaginar. A vela escolhida por ele para celebrar a data, tal como um fogo de artifício em miniatura, indomável e destruidora, como ele só depois saberia, liberou faíscas incandescentes no ar sobre a mesa e queimou a toalha de família que o namorado herdara da avó, que recebera, por sua vez, das mãos da mãe que a bordara mais de um século atrás numa Alemanha que já não existe. O aniversariante, que nesse momento já se sentava numa das cadeiras em volta da mesa e contemplava um pouco sonolento o crepitar da vela, terminou de despertar de súbito quando o absurdo dos buracos negros na toalha branca o sugou para a realidade. Tentou sorrir, perplexo, quase a chorar. A camisa recebida de presente do parceiro incendiário remanesceu intacta sobre a mesa como signo da paralisia emocional que o incidente causara ao namorado.
 
No início da tarde foi ao correio. Pela primeira vez na vida enviava um pacote para a Ásia, uma polo que vendera no Ebay. Quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, atendiam os clientes. Ele se lembrou do rosto de um dos homens e soube imediatamente que não gostaria de ser atendido por ele. Não pôde precisar nenhuma situação de onde essa indisposição tivesse surgido, mas olhando para o rosto do homem desde a fila, lembrou-se de impaciência, de menosprezo e de sarcasmo. Esse mesmo rosto cuspiu em alemão “o próximo”. Que era ele. Disse um “bom dia” firme e bem articulado ao entregar o gordo envelope com a polo ao balconista. Sua cabeça se abaixou um pouco em direção ao envelope que ele, agora, tinha nas mãos, mas era difícil decidir se esse ínfimo gesto era uma resposta ao cumprimento ou se o atendente já se ocupava com seu trabalho para despachar o rapaz o mais rápido da sua frente. Não disse nada, começou a digitar com rapidez as informações do pacote. O rapaz levou a mão direita discretamente ao bolso em busca da carteira. Não desejava incitar tampouco experimentar a impaciência desse homem, que lhe disse, agora, algo, que ele não pôde entender porque tentava lembrar que moedas tinha na carteira. O céu se fechou abrupto sobre sua cabeça, vaticinando tempestade. Detestava situações imprevistas, tanto mais situações imprevistas em alemão. Vasculhou apressado sua mente para ver se alguma palavra dita pelo balconista permanecera ali após ser surpreendido em seus pensamentos matemáticos. Encontrou “assinatura” e viu uma caneta estendida diante de si por uma mão que já começava a tremer, impaciente. Assinou, precipitado, um garrancho no papel branco do pacote, e soltou, aliviado, a caneta sobre o balcão, preparando-se, mais uma vez, para buscar o dinheiro no bolso, cumprir sua última obrigação e sumir dali, mas a mão que antes lhe estendeu a esferográfica teve um espasmo e bateu convulsa sobre o pacote. Do rosto vermelho de agitação do atendente saiu um bloco de palavras que o rapaz tentou, aflito, separar enquanto o crescente calor da ignomínia começou a lhe arder no peito e na face. Entendeu, mais uma vez, “assinatura” e uma nova palavra: “fita adesiva”. Pôs-se a assinar, agora, sobre a fita adesiva, perguntando-se, humilhado, quantas das pessoas da fila atrás dele assistiam ao seu ultraje, mas a mão do homem voou voraz sobre a sua e lhe tomou a caneta. Da cabeça, voou um novo bloco de palavras ou o mesmo de antes. O jovem não pôde diferenciar porque, nesse momento, por já ter medo do homem e por ter um ardor a percorrer todo o seu tronco, ocupava-se em dominar os sinais corpóreos que poderiam denunciar o quão ferido ele se sentia. Só pôde perceber que as palavras saíram com mais ira e impaciência, acompanhadas por uma nova convulsão mais intensa da mão. Não, não havia ninguém na fila que pudesse não perceber o que se passava com ele no balcão, concluiu sendo invadido por mais calor e umidade. Buscou ávido por uma nova palavra antes que se desvanecessem no ar, talvez aquela que o conduzisse ao gesto correto, impacientemente esperado pelo balconista e com o poder de por fim à sua tempestade biliar. Encontrou uma até então despercebida: “tranversalmente”. Sua mão tremia até o ponto de quase não poder assinar quando segurou a esferográfica pela terceira vez temendo que a mão do outro explodisse como bomba sobre a sua, mas confiou ter, enfim, compreendido o gesto esperado e assinou transversalmente um garrancho que começava sobre o papel e terminava sobre a fita adesiva, um garrancho que nem de longe se parecia com sua assinatura real, mas era transversal, era sobre o papel, era sobre a fita, e isso parecia ser tudo o que importava. Foi como água sobre brasa incandescente. O homem delineou um sorriso que não desejava ser mais que ironia e desprezo, puxou, calado, o envelope para si e voltou a digitar. A crepitação de antes foi substituída pelo silêncio do fogo recém-afogado, um silêncio que de um lado do balcão, significava se restabelecer das próprias cólera e impaciência e, do outro, do medo e da injúria. De modo algum, e em nenhum dos lados, esse silêncio já era sossego. Os dois ainda compartilharam por árduos minutos um ar rançoso e um mutismo pesado, cheio da memória da recente tempestade. O rapaz pensou em falar, ensaiou mentalmente perguntar ao homem se ele sabia o que era começar depois de adulto uma vida em outra língua, se ele sabia que sua cólera só produzia ódio ou medo nas pessoas, se ele realmente julgava por bem ter uma multidão de pessoas que lhe nutriam ódio ou medo. Pensou tudo isso tentando dominar uns espasmos que começaram no interior do seu nariz e no lábio inferior. O ardor, antes no tronco, subiu à cabeça como febre de revolta que ele logo entendeu que se materializaria no fluxo de um choro, que ele, pelo menos ali, firmemente impediria. Bastava de humilhação. Não falou nada do que ensaiou, temeu ser tomado por psicopata pelo único e verdadeiro psicopata entre os dois. Isso seria demais. Pagou e respirou serenado no início de um contentamento por poder finalmente deixar de contemplar aquele rosto e de dominar os espasmos que ocorriam no seu corpo. Fora do correio, do lado de sua bicicleta, antes de subir e pedalar pra casa, consentiu que três lágrimas percorressem, mornas, sua face, mas sem saber bem o porquê, mudou subitamente de ideia: não era mais pra chorar. Segurou firme no selim para impedir o iminente fluxo, deixou que a brisa varresse sua febre, subiu na bicicleta e foi.
 
Em casa foi direto pro computador, inventando tarefas, evitando o namorado pelo menos até o jantar de aniversário, com amigos. Conhecia tanto a tentação de partilhar histórias com ele como a sugestão do bom senso a não partilhar essa história do correio para não entristecê-lo um pouco mais depois da história da toalha. Melhor distância, pensou. Antes de ir pro banho, porém, e ainda invadido pela lembrança do correio, entendeu que precisava se expurgar dessa memória e que só falando é que o poderia. Foi para a sala onde trabalhava o namorado decidido a prescindir de todo bom senso. Narrou tudo, reviveu as emoções difíceis. Dos olhos fluíram lágrimas, finalmente livres, como os rios que só sabem correr. Expurgou-se e foi pro banho com os olhos vermelhos e o coração pacificado. Pouco antes de sair pra jantar avaliou o dia até ali e admitiu desgostoso que ele devia ter sido melhor. Mas para todas as coisas maiores que ele, que fugiam de seu controle, de seus planos e de seus desejos, havia a fresca alegria de ter um parceiro, poucos mas bons amigos e um tenro pernil de cordeiro que dali a pouco comeria. Ao ter esses pensamentos, estava de pé, já vestido pra sair, perscrutando sua imagem no espelho do banheiro.