sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Sobre o Fim do Mundo, o Demônio e Alucinação

O Fim

Ontem o mundo quase acabou aqui em Goiânia. Eu já ia sair da padaria quando o Demônio decidiu que era o momento do fim. Não lembro de ter presenciado aqui na cidade uma chuva como a de ontem há pelo menos um ano, mas isso não significa muita coisa, porque não tenho memória. De todo modo, senti haver algo grave no ar. Esperei que o fluxo de chuva diminuísse, vesti umas sacolas descartáveis nos pés e a capa de chuva, montei na bike e comecei a ir lentamente, um pouco temeroso do resultado que podia surgir da soma de tempestade, escuridão e carros apressados (interessante como os motoristas daqui sempre estão loucamente apressados: sob sol ou chuva e em qualquer hora do dia). Sempre pensei que andar de bike nesta cidade e permanecer vivo fosse um milagre. Especialmente ontem, esse pensamento poderia ter recebido um tom estranhamente metafísico caso eu sobrevivesse à loucura que teria sido descer toda a T2 sem a luzinha vermelha que R. trouxe pra eu por na traseira da bike. Sem ela, fatalmente algum carro teria me confundido com o ar. Não existia luz nos postes nem em parte alguma, descobri isso assim que saí da padaria. Fui com as mãos firmes no guidão, sempre freando pra diminuir a velocidade da bike e o risco de alguma surpresa no meio do breu. Estão rijas e doem mesmo agora. Descobri no caminho uma paisagem desoladora que surgia diante de mim como um frame de alguma película noir a cada relâmpago que iluminava a noite como um sol alucinado. Galhos, folhas, pedras, terra e lixo, muito lixo, sobre o asfalto ou se juntando à enxurrada noturna que o tornava num mar negro-azul por onde eu passava como um Cristo em meio a seu milagre. O fim era de uma beleza grave e apavorante.

O Demônio

O Demônio existe, e na última noite, quando ele desistiu de por termo ao mundo, veio dormir na loja que fica abaixo do meu apartamento, usando de muitíssimo mau gosto para exercitar meu cérebro não sei com que intenção. Por meio de um dos seus poderes, tornou-se som: o som frenético de um alarme sonoro, que permaneceu acionado durante toda a noite. Incansavelmente, sua epilética voz puxou-me do sono sempre que, pelo cansaço, comecei a desfalecer, e forçou-me a ter o cérebro desperto, em intervalos que agora imagino que foram mais ou menos regulares, até que pelo começo do dia, meus pensamentos fossem na verdade mais torpor e confusão do que pensamentos sobre alguma coisa; até onde pensar literalmente doesse. No final, já não pensavam nada, só me aproximavam da loucura.

Alucinação

Num momento hoje de manhã pensei que eu fosse cair, simplesmente por já não poder estar firme e em pé. Eu estava no cartório tentando acertar os últimos detalhes burocráticos para concluir o aluguel do novo apartamento, pensando “que nos últimos dias, tenho comido pouco e mal, que tenho percebido os ossos da região dos ombros e do peito emergirem por sobre os músculos que vão murchando, e que tenho repetido muitas vezes o gesto de puxar as calças para a cintura porque têm insistido em cair” quando o balconista do cartório me trouxe pra fora de mim anunciando que uma coisa não tinha funcionado: minha prima não tinha firma aberta naquele cartório e teria de ir ali. Eu já não estava preparado para algum acidente. Exatamente neste momento, senti meu corpo tão débil que pensei que fosse cair. [...] Depois de tudo ter dado certo no cartório, segui, enfim, para a imobiliária, para apresentar pela décima vez os documentos (seriam os últimos?), pagar o primeiro aluguel e pegar as chaves. Ocorreu-me de passar na antiga imobiliária, que ficava no caminho para a nova, e perguntar se tinham recebido meu e-mail avisando da minha saída do apartamento. No e-mail, eu tinha pedido uma confirmação de recebimento, mas penso que a inteligência das pessoas que trabalham ali não lhes permitiu a capacidade de entender o que seja uma “confirmação de recebimento”. Sim, tinham recebido. Só levei um susto: terei de pagar, além da reforma do apartamento que tem me deixado tenso, o aluguel que vence no próximo dia seis, significando que gastarei o dobro do que pensava. Respirei, sorri, persegui minha dignidade e disse que “sim, tô bem, tô indo prum lugarzinho menor, mas agradável, também no Coimbra!” e segui para a nova imobiliária. [...] Estava meio zonzo ao descer a T2 de bike indo para casa. Não sei se por não ter comido, se por ter a mente meio perturbada ou se por serem dez para o meio-dia, quando eu já deveria estar chegando à padaria e eu fosse cometer, pela milésima vez, o pecado de chegar atrasado ao trabalho. No meio do caminho, vejo que alguns sinaleiros não estavam funcionando, em resultado da última noite apocalíptica. No cruzamento, um pequeno caos, que entendo cada vez mais ser típico dessa cidade, sem que isso insinue em mim algum sentimento positivo. Durante minha espera para cruzar a rua, comecei a notar um carro que tentava fazer o mesmo. Logo percebi que tinha um pé do lado de fora da porta. Não entendi muito bem esse pé fantástico. De fato, no momento não fui capaz de pensar em nada, mas apenas me fascinar com a visão. Não entendi como foi possível que a porta estivesse tão bem fechada, como também constatei, apesar daquele pé pendendo ali fora, como se o osso da perna fosse de espuma e pudesse ceder para o fechamento ideal da porta. Lembro que o olhei por uns bons segundos para ver se se dissolvia e também vi o rosto que devia, juntamente com o pé pendido, compor a unidade de um corpo. Mas o rosto não sabia que havia um pé seu ali, bem ali onde ele estava. Era o rosto de uma senhora de pele muito clara, levemente azul, no mesmo tom do pé, com olhos que olhavam pra lugar nenhum e que alguém não podia saber com facilidade se estava viva ou morta.

2 comentários:

  1. caraca! um alarme no ouvido a noite toda! definitivamente enloukecedor. eu teria dormido na casa d alguem, ou faltado ao trabalh no dia seguinte. ou me matado, achando ter pirado d vez.

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  2. Querido, Murphy foi uma de minhas encarnações, tenho certeza disso. Se algo está bem gostoso, pode crer que vai apodrecer. Agora imagina esta sirene do alarme dentro da sua cabeça, sem dia nem hora pra parar de gritar.. looucura né? Enfim, não te conheco, vou apenas desejar-lhe melhoras, que a vida nem é tão boa nem tão ruim qto parece, depende apenas se seu sapato está apertado, se a TPM está te matando, se seu namorado foi um fofo hj ou se sua mãe resolveu ser a melhor do mundo esta manhã, ou seja, tudo depende de momento, local e razão. Paz. Brisa

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