terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Haneke, Noé e von Trier: Três caras verdadeiramente cruéis


Nem tarados, nem diabólicos, nem insanos. A crueldade destes diretores repousa na idéia que eles têm do que seja a verdade. Uma verdade que pode descer indigesta e difícil; aliás, como a verdade muitas vezes costuma ser! Talvez, por isso mesmo, eles possam estar certos e suas obras comporiam um retrato, por vezes terrível, mas certo, do homem. Também difíceis são seus filmes e não por serem muito experimentais ou fragmentados. Isso eles razoavelmente são, mas a dificuldade se deve antes ao clima geral desses filmes do que à complexidade de suas estruturas. Definitivamente não são filmes divertidos e não estão para entreter no sentido puro, apesar de que alguns podem conseguir cumprir essa façanha, como “Funny Games”, do Haneke, ou “Dogville”, do von Trier. O que permanece mais evidente, porém, e que, como espectadores, não podemos deixar de nos contagiar, disso decorrendo a dificuldade das obras desses autores/diretores, é o climão que as perpassa, um clima introspectivo, pessimista, cínico, desolador ou carregado de ódio. E ninguém, entre todos os diretores, parece ter sido capaz de superar o franco-argentino Gaspar Noé na expressão destes dois últimos atributos.
Haneke, Noé e von Trier. Os nomes não foram listados ao acaso. Para mim, a dificuldade em lidar com a obra desses diretores segue esta ordem, Haneke sendo o mais difícil. Dificuldade aqui, entendida como o resultado da estrutura técnica do filme: montagem, linearidade e opções que o autor fez a respeito do uso da luz e da câmera, somada ao roteiro: a indigestabilidade da história e do tema do filme. Dificuldade, portanto, de forjar algum prazer ou empatia pelo filme. Apesar de autorais e subjetivos, são filmes racionais e filosóficos, que combatem a todo custo – uns mais que outros, e o Haneke liderando, de longe, nesse ponto – o melodrama, a aproximação, a familiaridade, a empatia, seja pelo filme ou pelas personagens, e postulam, em lugar disso, a imparcialidade de posições, a reflexão racional, o distanciamento observador, o não-comprometimento, a frieza.
Analisemos, superficialmente, a crueldade de cada um desses três diretores para com os espectadores de seus filmes. Começando pelo lobo dos lobos, Michael Haneke. Esse filósofo do cinema, que verdadeiramente estudou filosofia, e em minha humilde opinião, é uma das mentes mais brilhantes e iluminadas de todo o cinema, por seu modo singular de filmar e pelos temas delicados e complexos de sua obra, foi o responsável por uma evolução radical em minha experiência do cinema.


O primeiro que vi dele, “Funny Games”, é um surpreendente filme metalingüístico, que joga e usa de cinismo com o espectador, usando um filme violento para criticar justamente a superexploração da violência no cinema e o interesse do espectador por esse estilo de filme. Aprendi então que eu não era assim tão inocente, porque aceitei jogar com Haneke até o fim do jogo, o fim do filme. Depois aprendi a me interessar pelo filme em cada um de seus fragmentos, sem desejar algo que seu desfecho pudesse me reservar, como uma resposta a uma pergunta que o enredo tivesse suscitado. Aprendi a apenas observar, como o próprio Haneke fazia. Notei que em filmes como “Caché”, “Código Desconhecido” e “O sétimo continente”, particularmente neste último, ele filma como um autista, com uma obsessão por imparcialidade e distanciamento. Uma obsessão que atinge especialmente a câmera e filma pessoas como se fossem coisas, permite-se facilmente cortar o rosto das pessoas e filmar apenas suas mãos e a tigela de cereais num café da manhã e, antes de tudo, é uma câmera que observa, como se estivesse sido deixada, como se não houvesse uma vontade por trás dela, não se interpõe entre as pessoas nem as coisas; a aproximação que existe quando se filma um rosto de perto ou uma placa de carro no início de “O sétimo continente”, não é uma aproximação física da câmera com essas coisas – sim, um rosto vale o mesmo que uma coisa para os autistas – mas um zoom in que possibilita uma aproximação falseada e não-comprometedora. “O sétimo continente” exemplifica bem esta característica. Nele, Haneke parece ter querido suprimir toda humanidade das personagens humanas – a família composta por pai, mãe e filha – que passam o filme sem manifestar sentimentos e com conversas curtas e quase inexistentes; inexistentes do mesmo modo que as coisas não saem conversando entre si. As coisas seriam as personagens inanimadas desse filme; são filmadas com o mesmo interesse com que o diretor filma a família, que não passaria, afinal, de mais uma coisa, apesar – e isso é essencial para a compreensão da dimensão do autismo de que eu falava – do evento radical e terrível de que o filme trata. Estamos diante de uma família que irá cometer suicídio. Não é necessário dizer mais nada. O filme mais fácil para quem desejar conhecer esse autor imperdível do cinema é o “Funny Games”, seguido por “A professora de piano” e “Cachê”. Por que ele é cruel: impõe um distanciamento ou ironiza o espectador.



Todo mundo que goste de filmes já ouviu o nome de Gaspar Noé associado à cena de estupro mais polêmica de todo o cinema. Ele é o responsável pelos aproximados oito minutos constrangedores em que Alex, personagem de Mônica Belucci, é estuprada e espancada em uma passagem subterrânea, na Paris de “Irreversível”. A cena supostamente tem a mesma duração que teve a violação da personagem; por ironia e diferente da estética visual que caracteriza o filme: câmera “bêbada” que mal pode parar de girar causando vertigem no espectador e iluminação baixa ou tendendo para o vermelho, nesta cena existe ótima luz e a câmera repousa despudoradamente no chão, bem em frente onde todo o ato ocorre, filmando tudo sem qualquer vestígio de pudor. Mas eu não acho o Noé cruel por causa desta cena. Tampouco pelo modo vertiginoso com que optou filmar este filme, que o deixa, sem dúvida, difícil; mas essa dificuldade não coincide com o motivo que me leva a considerar Noé um diretor cruel. A coisa dele pra mim não é visual, mas filosófica. Ele é extremamente pessimista e sua crueldade emana de sua filosofia. E ele faz questão de deixá-la gritar bem na apresentação, como se dissesse: “Prazer em conhecê-lo! Sou o Noé e sou um pouco pior do que o Cioran!” Para tanto, letras imensas surgem na tela durante “Irreversível”, sentenciando: “O tempo destrói tudo”.



Porém, o filme que melhor representa a crueldade filosófica de Noé é “Sozinho contra todos” (I stand alone, em inglês). Não encontrei outro que pudesse se comparar em pessimismo. O açougueiro, protagonista do filme, e que tem o início de sua história narrado no antecessor “Carne”, é um sujeito com uma lucidez seca e anti-dramática, e com uma carga tão alta de agressividade que só podemos pensar que irá explodir a qualquer momento. O filme é quase um monólogo da filosofia do Noé recitada pela boca de seu cruel açougueiro. Ele não poupa o espectador de pensar sobre coisas embaraçosas, como a terrível falta de conexão entre as pessoas. “Por que, afinal, os filhos mostram amor pelos pais?”, “Pode um pai ser amante de sua filha?”, “O único sentido da vida é foder”, lamenta o açougueiro considerando-se numa fase em que a realização do sexo é cada vez mais difícil. Estes são os pensamentos centrais desse filme indigesto. Aumentam a indigestão o hiper-realismo usado pelo autor, inclusive apresentando lugares decadentes e sujos de uma Paris incomum, particularmente o quarto miserável que o açougueiro aluga e a magistral atuação de Philippe Nahon como o açougueiro. Quem se dispor a refletir sobre a solidão e a miséria humanas conforme a mente de um ácido pessimista, sugiro assistir aos três filmes, na ordem em que foram feitos: “Carne”, “Sozinho contra todos” e “Irreversível” Por que o diretor é cruel: por sua filosofia extremamente pessimista.


O terceiro mestre, Lars von Trier, passou a ser conhecido pelos espectadores de cinema comercial desde “Dogville”, com a hollywoodiana Nicole Kidman no centro da trama.



Antes de “Dogville”, seu filme mais famoso certamente é “Dançando no escuro”, comentadíssimo pelo hiper-realismo atingido com seu visual documental: cores desbotadas e câmera na mão, e pela sensível atuação da cantora islandesa Björk. Na minha opinião, a genial atuação da Björk, por si, imprime uma densidade e uma verdade que fazem este filme ser tão cruel pra mim. Não que ele não fosse se não houvesse “Björk” nele. Von Trier é genial, não duvido que ele teria conseguido dirigir alguma atriz que pudesse representar a Selma quase com a mesma comoção com que a cantora islandesa conseguiu. Mas Björk pareceu fazer mais do que representar, pareceu ser a Selma; e louca como é, não duvido também que ela tenha acreditado sinceramente ser a Selma durante o tempo em que o filme foi rodado. Daí o “quase” que usei acima referindo-me a alguma atriz fazer este papel: penso que faltaria em todas as atrizes a loucura da Björk para atingir a comoção decisiva desta personagem. Daí eu não conseguir pensar o “Dançando no escuro” sem a cantora no papel central ou pensar o filme sem as músicas da Björk e sem sua voz que uns adoram e uns detestam com a mesma intensidade. Posso lembrar hoje, três anos após ver o filme pela primeira vez, dos gritos roucos da Selma na última cena. Eles transportavam um medo real e primitivo. Eles me acompanharam por muitas horas depois de desligar o DVD.
Salvando “Manderlay”, onde podemos ver uma heroína com certa atitude, mesmo que o resultado desta ação seja inesperado ou caótico, nos outros filmes do diretor com mulheres no núcleo da trama: “Ondas do destino”, “Dançando no Escuro” e “Dogville”, acompanhamos mulheres que tudo o que fazem é tentar ser “boas”, sujeitando-se e resignando-se às ações causadas por forças externas, que supostamente têm o poder que estas heroínas não têm para agir. Nesse caminho de bondade e de justiça, o diretor começa a torturá-las – e ao espectador também, que assiste, impotente, a todos os castigos que estas mulheres recebem por decidir serem boas. Definitivamente não são castigos fáceis, e é bom estar avisado, da mesma forma que é bom lembrar que o Deus aqui é Lars von Trier. O que ele parece escrever é um tratado difícil de ser aceito – antes por ser assustador do que por ser absurdo – sobre bondade, justiça e, antes de tudo, ética. Sobre os limites que têm nossas ações, sobre o que realmente pode estar sob nosso poder e o que foge, sobre escolher agir ou não, sobre ser justo até o fim. É irresistível lembrar aqui da catarse que Grace, a heroína de “Dogville” realiza, onde o diretor oferece sua lição definitiva sobre justiça. Diferente das outras duas: Bess, de “Ondas do destino, e Selma, de “Dançando no escuro”, que amargam sua bondade até o fim, Grace descobre em si o poder; descobre que tem poder para agir, e que tem o poder e o dever de ser justa. Este momento catártico tem um sabor especial para quem conheceu antes de Grace, também Bess e Selma. Por que o diretor é cruel: porque ele é como um deus que ensina com o castigo.
Estou certo de que este texto é insuficiente e superficial, mas já terá cumprido sua intenção se for capaz de atrair os desejos de alguém para conhecer a obra destes maldosos diretores!
Francis Gontijo

5 comentários:

  1. e os idiotas do Von Trier? é cruel e deprimente. Aliás ele é todo crueldade, como em Europa, em que o herói morre bestamente afogado....
    Gostei do que li, mas vc precisa parar de pedir desculpas pro interlocutor; vc pode não ser um crítico profissa e tal, mas qq crítica presume 'segurança', mesmo que so aparente.
    go on, kiD! xxx

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  2. hehe valeu pela dica, Wlad! confesso que me senti um pouco inseguro mesmo quando decidi escrever sobre esses caras que causam verdadeiros terremotos no cinema!

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  3. Excelente texto! Sou fã do Noé e concordo com a sua opinião sobre ele. "Sozinho contra todos" mexeu muito mais comigo do que "Irreverivel". Eu fiquei durante uns 3 dias com o clima pessimista do primeiro longa de Noé.

    De Haneke só conheço o "Funny Games", e a versão U.S, mas pelo oq eu ouvi dizer as duas versões são identicas. Sou fã do filme, está na minha lista de filmes prediletos.

    Quanto ao von Trier eu conheço "Dogville" (filme que eu não gostei, exceto pela mensagem final) e "O grande chefe" (esse eu gostei mais. Diria que, nessa obra, o cineasta foi cruel, mas de uma maneira não violenta, e sim sarcastica).

    Parabéns pela analise! Abraço!

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  4. Valeu, Daniel! Pois é, esses diretores são bem malvados por motivos diferentes. Se for possível, assista à primeira versão do Funny Games e ao Sétimo continente, do Haneke, esses 2 filmes são geniais e imperdíveis! Abço!

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  5. stefane dos santos de jeus11 de janeiro de 2010 às 22:18

    Texto interessante...despertou em mim o desejo de assistir os filmes de Noé e Trier...já assistir alguns de Haneke... e o considero excelente...ele mostra na tela uma realidade cortante e indigesta...Parabéns pelo texto... vou recomendar...Vi o link na comunidade do orkut e resolvi dar uma olhada....muito bom...

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