Ela
acha insuficiente apenas ter compaixão pelos que, segundo
crê, têm uma vida mais amarga que a sua –
identificando-se com eles em sua
dor, seus medos e nas dificuldades que
viver lhes significa –
e ter ódio dos ricos – o
que me parece ser a
fórmula preferida pelas outras
senhoras católicas para afirmarem tanto a
si mesmas como a quem estiver
por perto sua humildade. Ela, porém, não se contentou em parar no
mesmo ponto das outras. Avançou mais um
passo e decidiu que se submeteria a qualquer um que cruzasse seu
caminho. Decidiu que seria menor que ele e
respirou com a confortante sensação de ir
na direção certa. Logo inferiu,
no entanto, que apenas um passo à frente
das outras senhoras era pouco. Ponderou
que quando chegasse o momento de Deus decidir
quem poderia entrar e ocupar os concorridíssimos campos
celestiais, já tão cheios de almas, definindo com sua infalível
justiça quem seria escolhido, um só passo
à frente da concorrência seria
insuficiente para se tornar visível à Justiça
Divina. Deu, após esses
pensamentos, mais um passo e começou a se odiar como eu nunca
pude ver ninguém fazer. E costumo ver esse tipo de coisa –
esse tipo de coisa que vai por baixo da pele das pessoas.
Costumo enxergar isso. No caso dela, porém, essa
minha faculdade nunca me foi fácil. No caso dela, desejo
poder não enxergar para não me embaraçar
tanto.
Logicamente
eu já vira
pessoas se odiarem antes de poder vê-la fazer o
mesmo. E entendera então que muitas
relacionavam o ódio a
si mesmo com a humildade, como
se dissessem que não podiam ser pessoas de ego inflado simplesmente
porque eram humildes. Depois dela, no entanto, percebi que todos os
casos de autoódio que eu conhecia tinham certa porção de vaidade:
as outras pessoas se odiavam se elevando. Antes de serem
humildes, ou num paradoxal processo
simultâneo, eram vaidosas: negavam e
detestavam seu eu somente após
se empoleirar no alto do que fosse que
servisse de palco, como que chamando
para o seu espetáculo revelador de invejável virtude; triunfando,
assim, orgulhosas, sob luzes e olhares, pelo dom que tinham de se
odiar. Essa é a diferença essencial, onde
nasce meu nó na garganta: Ela se odeia
se apagando. Desconheço
comparação para seu autoódio.
Devo
dizer aqui,
antes de prosseguir, que
não me foi fácil começar
a enxergar seu
autodesprezo por esta
razão: não é
fácil enxergá-la. Quantos afinal a enxergam? Quantos são
capazes de vencer seu pertinaz empenho
diário em ser invisível? Não posso nem
mesmo culpar os outros por não conseguirem
isso.
Gostaria
de entender como é possível haver uma mulher, haver alguém, sem
qualquer opinião ou gosto. Alguém assim
me aterroriza. Durante nossas poucas conversas, percebo
que não sei lhe dirigir o olhar sem
feri-la (Serei mesmo eu ou será novamente sua
diligência em ação?). Também não
posso tocá-la não sei exatamente porquê.
Talvez o salto irreversível que ela fez
nas profundezas da submissão me paralisou,
como se eu simplesmente não conseguisse tocar alguém que se odiasse
com tanta verdade. Ah, mas como detesto
amá-la assim apenas desse jeito teórico.
Amá-la assim paralisado pela contemplação
de uma coisa desconcertante. Detesto a
submissão que ela se impôs, tornando-me
rei – como, eu já disse, faz com todos.
Fez-me um rei que odeia
reinar. Não aqui, não assim, não sobre ela.
Como
ela pôde intuir um dia com tanta certeza,
deus, que não fosse merecedora de nada na
vida? Como pode ser isso? Move-se só
pelas margens, nunca percorre
uma sala pelo meio, mas rente às paredes
como um cão que sabe da sua sarna e que
não deseja lembrar às pessoas da sua
existência. Como um cão sarnento. Mas ela tem
a pele bem limpa e saudável. O cão e a sarna são
o valor que reserva para si. Pisa o chão
suavemente, fala pouco. Não é de falar, é
de ouvir. De ouvir e fazer. É de braços e
de mãos. De bolos, de biscoitos, de casa limpa, de roupas alvas e de
choros que estouram súbitos como disparos. Desses últimos, porém,
ninguém, exceto eu, ouviu notícia.
Como
eu disse, nunca está no meio. No
centro, não. Só nas beiras, nas bordas, rente à parede imaginando
uma linha, um círculo que encerra as
coisas e as pessoas importantes. Ela, claro, do
lado de fora. No meio da sala, não. Não pode
ocupar espaço nem se mexer com entusiasmo.
Não estica o braço durante o jantar para
se servir da salada que há no meio da
mesa. Cuidado com a linha, o braço vai transpor a linha!, ela
deve ouvir.
Penso
que uma de suas maiores frustrações é não
ter podido encontrar um modo
de iludir a física e de poder, assim, não
ocupar espaço. Infelizmente para ela, ela
é matéria, corpo... e ocupa espaço. Incapaz de dissolver
essa triste realidade, pôde apenas escolher reger-se pela lei de
ocupar sempre o mínimo espaço possível. Portanto,
vive espremida do lado de fora das linhas que ela mesma
começou a desenhar
mentalmente e passou, então, a enxergar.
Deixa o centro
para todas as pessoas que conhece,
que, no seu pensamento, têm
mais valor que ela e que, isso lhe parece óbvio,
não só merecem como
devem protagonizar a vida de alguém como ela.
Interessante o modo como expressa seu proprio mundo intimo e ser. abs
ResponderExcluirAbraço, cristiano! já tô seguindo o apimentário, que não conhecia, e que me pareceu muito bacana!
ResponderExcluircomovente
ResponderExcluirui, que aperto no meu coração pisciano! adoro resignação!
ResponderExcluir(sim, eu sou um vaidoso "auto-odiador")
parabéns, texto denso, quase não terminei, mas fui até o fim pq era dolorosamente merecido.
abraço.
Que legal que vc pôde vencer esse efeito repelente que meus textos (in)felizmente costumam ter, Wlad! Uma alegria pra mim vc ter lido até o fim!
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