quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Contracorriente ou sobre como chorar despudoradamente com filmes



Costumo brincar e dizer que sempre choro nos filmes, simplesmente um exagero discursivo que gosto. Afinal, de fato, nao choro com a maioria dos filmes considerados "drama" que vejo, sejam americanos ou de alguma outra parte do mundo, mas sim choro muito com alguns poucos filmes.

Nao sei exatamente como esse cálculo funciona, que elementos um filme tem de ter pra conseguir girar essa minha chavezinha interna acionando um pranto inconsolável. Sei que tem a ver, claro, com boa direçao, bom trabalho dos atores, ver o filme em versao original e nao dublada, estar num bom dia em que eu esteja disposto a "receber" o filme ou a embarcar e viajar na sua história/narrativa ou, na falta de uma, no seu visual e na sua poesia. Também ajuda bastante o fato de eu ter ótima capacidade de empatia no geral e, aqui, com os personagens.

No início de um filme nao é tao fácil, porque o personagem me sensibiliza pouco e porque tive pouco contato com ele e é natural, portanto, que no começo eu tenha empatia apenas com os personagens que agirem de um modo semelhante ao que  imagino que eu agiria nas mesmas situaçoes, da mesma forma que temos muito mais facilidade para gostar de quem se parece com a gente.

Se o filme for ruim, se o trabalho com os atores ou se os personagens em si forem mal desenvolvidos, pode ser que eu nem chegue até essa primeira fase da empatia, onde consigo amar os personagens que me sao semelhantes. Porém, se o filme for bom, se a verdade desses personagens conseguir me convencer, se o trabalho dos atores for bem dosado e sensível, terei empatia até mesmo com personagens que absolutamente nao agem da forma que eu agiria em situaçoes semelhantes. Amarei, assim, aqueles personagens que se parecerem comigo, mas também os que nao.

Nesse caminho para o amor, há muita chance de o filme efetivar escolhas e de instalar no meio do caminho barreiras, que pra mim funcionam como tais, mas que foram realmente pensadas para serem o oposto, ou seja, pensadas para funcionar como pontes e levar o caminhante-espectador a experienciar momentos de choro e suspiros. Falo aqui de um dado tom usado para conduzir a narrativa, de uma certa perspectiva, de música instrumental rasa usada infantilmente para oferecer ao espectador o tom certo em que uma dada cena deve ser recebida e lida, e todas as fórmulas a que um filme pode recorrer quando ele deseja ser entendido como um drama ou como um drama romântico.

Essa cartilha do choro talvez funcione com a maioria dos espectadores, mas comigo geralmente só causa raiva e funciona como a barreira de que falei acima, que me dificulta ter empatia com os personagens mesmo quando o trabalho da direçao e dos atores é bom.

Acho que me perdi um pouco nessa conversa sobre empatia, mas antes dela eu falava sobre os elementos que entram em jogo pra que eu consiga chorar com um filme. Em que sentido empatia contribui pra isso? No significado da própria palavra, encontramos essa resposta: eu considero como minhas as dores dos personagens. Logo, se assisto a um filme em que eles por algum motivo e de alguma maneira sofrem, se o filme se trata de um trabalho sensível e nao presunçoso ou pelo menos presunçoso com legitimidade, e se nao encontrei nenhuma barreira para uma recepçao e um contato sensíveis e intensos com o filme, certamente chorarei como um bezerro.

E chorar com filme é uma das coisas mais gostosas da vida. Mas tem de ser choro molhado, farto, suspirado, soluçado, destemido e livre. Será que no meio dessa minha intençao de falar de um filme, do qual nem sequer comecei a falar, terminei por fazer acidentalmente autoanálise e descobri agora a razao pela qual nao vou ao cinema? Que seria: no fundo, eu sempre espero que um filme possa me fazer chorar, e por isso vejo-o em casa a fim de que, se eu estiver certo, possa liberar desavergonhadamente meu choro e ser feliz depois de chorar. "Ser feliz depois" é só um modo de dizer que depois podemos voltar às nossas vidas reais com nossos problemas, que podem ser mais leves ou mais pesados do que aqueles pelos quais choramos durante o filme. Aqui, importante nao é decidir o peso dos nossos problemas reais, mas entender que chorar com a ficçao é tao delicioso porque esse choro é fruto de um universo que só dura uma hora e meia ou no máximo três horas e que depois se dissolve deixando de existir pra nós.

Se um filme for muito bom, seu universo remanescerá por algumas horas ou, em raríssimos casos, por alguns dias em nossa memória. Depois disso, filme, universo, personagens, tudo será reduzido a apenas uma vírgula na sua lista de filmes assistidos, ou a menos que isso se você nao possuir uma.

Comecei esse texto com os olhos inchados após uma dessas sessoes maravilhosas, mas sou lento ao escrever e o universo de Contracorriente já começa a se rarefazer. É uma corrida contra o tempo. Mas eu tinha de escrever sobre o filme e, antes, tinha de falar tudo o que falei mesmo se fosse bobagem. Também tenho mania de considerar bons os filmes que conseguem me fazer chorar ou rir, e nesse caso nao sao as comédias. À enorme maioria, porém, apenas assisto sem maiores rebuliços. Definitiva e felizmente nao é o caso desse filme peruano que, apesar de permanentemente interessante desde o início, com a apresentaçao dos personagens, até a cançao dos créditos finais, demorei a derramar a primeira lágrima, precursora do mar que se formaria depois na minha sala. Talvez isso se deva minha demora para me acertar com a maioria dos personagens da história, que sao moralistas e tradicionais, e também acho que o filme podia ser um pouco mais silencioso. Refiro-me aqui nao aos personagens, que estao longe de serem efusivos, mas à trilha sonora instrumental que - apesar de conseguir realizar a façanha de estar ali e nao só nao pieguizar o filme como também conferir-lhe mais beleza - podia ser um pouco mais ausente para que o espectador tivesse mais chance de ser adulto e de se encontrar "sozinho" e sem distraçao com os personagens.


Contracorriente é a história de amor do pescador Miguel com o artista forasteiro Santiago, que, pelo amante, permanece na vila de pescadores em que vive Miguel com sua esposa grávida.

Percebo aqui como é difícil falar mais desse filme sem estragar as surpresas que ele possui. Portanto, falarei pouco sobre a trama. A fotografia é despretensiosa e de belíssimo resultado. As cenas nas praias, desertas de pessoas e de árvores, ou no mar, sao encantadoras. Os personagens lembram aqueles que muitos de nós encontramos pela primeira vez apenas recentemente no pungente La teta asustada, com sua humildade indígena, sua exaltaçao da entidade coletiva e sua religiosidade popular. O filme todo me lembrou a saudosa e querida série Six feet under. Gostei de encontrar na cena em que um galo canta, a confirmaçao definitiva de uma tese que eu conjeturava desde algumas cenas antes: a associaçao entre a narrativa do filme e a passagem bíblica que narra os últimos dias de vida do Cristo.

Na Bíblia, na noite em que Jesus é condenado à morte, ele prediz ao seu discípulo Pedro que Pedro negará conhecê-lo três vezes nessa mesma noite antes que um galo cante. Na hora, o discípulo considera a previsao um absurdo, mas instantes depois diz a três pessoas diferentes que nao conhece e que nunca esteve com Jesus. E também é o que diz, no filme, Miguel, durante um mesmo dia, quando perguntado sobre Santiago. Nos dois casos, um galo canta após as negativas dos pescadores bíblico e peruano. Interessante também como a narrativa consegue se utilizar de excertos bíblicos para defender a possibilidade de um amor homossexual sob os olhos de Deus. Mas nao o faz como nessas tentativas religiosas modernas de aceitar a homossexualidade após uma interpretaçao bíblica direcionada a esse fim, mas sim irreligiosa e ironicamente para discutir e refletir sobre a possibilidade de inúmeras e inclusive opostas leituras desse texto sagrado.



Mas o efeito mais arrasador do filme pra mim, é a liçao que ele simboliza de como importa sim ser ético e respeitar as pessoas, especialmente as que nos amam. Depois de muitos tormentos e tentaçoes, também foi isso que aprenderam nossos Pedros-pescadores. E espero manter o ensinamento comigo mesmo depois de ter os olhos desinchados e desse universo de Contracorriente já estar totalmente diluído.

Nenhum comentário:

Postar um comentário