quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Andaluzia: caminhar e caminhar




Caminho pela Andaluzia e vou entendendo que caminhar nem sempre é o mesmo que caminhar. Ando por uma montanha, das muitas e belas que a paisagem andaluza possui, com meu namorado. Ele leva a mochila com nossa água, comida para a pausa do piquenique, kit simples de primeiros-socorros, nossos telefones e câmeras. Subo montanhas com custo. Culpo minhas pernas magras e sem músculos que tremem para arrastar meu corpo para o alto. Os dois vamos geralmente em silêncio, seja pelo rigor da subida que nos impede de poder falar e andar simultaneamente, seja por entendermos que é melhor assim, mesmo nas descidas, quando já não há tanto esforço físico e poderíamos conversar. É uma solidão a dois, uma solidão que não é má nem incômoda, mas morna e agradável.

No meio desta caminhada, lembro de outras vezes em que caminhei, desta vez no Brasil. Penso particularmente em duas experiências brasileiras, uma no Parque de Sete Cidades, no Piauí; outra em Bonito, no Mato Grosso do Sul. Ambas já aconteceram depois da minha iniciação andarilha na Europa. Como brasileiro, às vezes mesmo eu constituo a regra e, neste caso, descobri na Alemanha que eu – como quase todos os meus conterrâneos – detestava caminhar. Assim, infelizmente, antes da Europa entrar na minha vida, não fui tão bom para ser capaz de concluir que caminhar era algo a ser pensado e feito. Ao caminhar no Piauí ou em Bonito já tinha, portanto, certa experiência europeia para entender como as duas culturas enxergavam esse mesmo gesto. E vi que caminhar no Brasil podia ser algo bem diferente.

Primeiro: não se caminha no Brasil. Logo, quando se caminha se faz algo que é alternativo e especial. As pessoas que decidem fazê-lo – ao menos foi o que minhas experiências me revelaram – se vêem como ótimas, afinal são raras. Vendem uma imagem de consciência ambiental e de estilo de vida saudável. Longe de perceber, no entanto, que consomem a caminhada como o fazem com qualquer outro bem material ou imaterial capaz de somar valor à imagem que desejam vender de si. Pouco interessa a caminhada e o caminhar. Interessa o que ela contribui para o embelezamento e enriquecimento da imagem pessoal. Como fazer academia três vezes por semana ou comer sushi regularmente.

Como não se caminha no Brasil, não se sabe caminhar nem ter olhos para o exterior e a paisagem. Essa talvez seja a diferença mais radical que pude perceber entre europeus e brasileiros: a diferença a respeito da relação com a paisagem exterior, com a natureza. Diferente daqueles, nós brasileiros quase sempre fugimos, sem o saber, claro, de nos relacionarmos com o entorno. A natureza nos parece muito desejável nas imagens das revistas turísticas com seus verdes exuberantes, e o Pantanal exerce um fascínio mítico em muitos de nós. Fascínio porque geralmente permanecerá distante e irrealizável. Na realidade diária, porém, a paisagem natural que nos circunda – talvez mesmo a muitos habitantes do Pantanal – nos exerce pouco ou nenhum apelo, ou sequer é percebida como natureza. Em casos muito mais tristes, mas bastante comuns, em que a natureza passa por um momento no tempo a significar, para o brasileiro, uma evidente oposição entre o meu e o não-meu, entendemos que ela deve ser controlada. E a única forma de controle que conhecemos é a supressão. Todas as vezes em que a natureza deixa de ser apenas inofensiva, de poder ser apenas mentalmente ignorada por nós e passa a significar algum nível de ameaça às coisas que pensamos ser “nossas”, entendemos que é chegado o momento da luta. Uma luta não apenas burra, por não entendermos que o que desejamos dominar também é “nosso”, como injusta e sangrenta, vencida por nós com irrisória facilidade por conta do aparato tecnológico à que apenas nós, humanos, podemos recorrer e o fazemos. Ateamos fogo na colmeia de abelhas se não a desejamos ali debaixo daquela folha de bananeira no nosso quintal; desistimos da mangueira e das mangas por não aceitar dividi-las com os periquitos e cortamos a árvore quando pensamos que eles se aproveitam além da conta das “nossas” frutas; matamos a sucuri que comeu “nosso” bezerro; caçamos e matamos a onça que apenas ainda não fez nada, mas poderia fazer. Penso que nesta reduzida lista encontrada em minhas lembranças pessoais, que eu poderia facilmente estender, a imensa maioria de meus conterrâneos não percebe nada de estranho; não percebe sequer que há algo acontecendo aqui.

Depois há os casos em que a natureza é apenas inócua e pode, assim, ser apenas facilmente esquecida de lado. Nestes casos, agem nossos olhos mentalmente fechados para o entorno. Como já disse, não temos olhos para a paisagem, para os espaços amplos, para o longe. Nossos olhos são para espaços exíguos e fechados, para poucas distâncias, para paredes, para o que é mais nosso, como a sala onde se come, a casa onde se vive ou no máximo o quintal onde se faz a festa no fim de semana. Se viajamos de ônibus, a paisagem que flui na janela pouco nos interessa ou bem menos que a conversa que tentamos manter ao telefone, irritados pelas constantes interrupções na conexão. A paisagem está lá, mas não está porque ela nada significa pra nós. Não a enxergamos. Não sabemos lê-la como o fazemos com uma mensagem no whatsapp. Não sabemos o que fazer com ela nem como reagir.

Por isso na caminhada – essa rara intermitência para o brasileiro onde ele deixa de ignorar ou mesmo suprimir o entorno e deve enxergá-lo e mesmo interagir com ele – a figura do guia surge como quase imprescindível. O guia deseja curar esses olhos incapazes de enxergar as coisas que estão para fora das paredes. Ele diz olhe isto, veja aquilo, fotografe. Sempre as fotos. É estranho, mas sim, é preciso alguém para fazer o caminhante enxergar a natureza. Mais: enxergar que ela pode ser interessante e digna da sua atenção. Mas o guia, quase sempre um pastor charlatão, tampouco entende o silêncio da natureza, e tentará – impulsionado pelo seu espírito raso, o único que possui – conferir-lhe os mais estúpidos significados. Ele diz olhe esta pedra, ela se parece com o trono de um rei. Como se a pedra não pudesse interessar por se parecer simplesmente a uma pedra. Mais fotos. Nem guia nem guiados sabem contemplar ou estar em silêncio. O silêncio os perturba. Assim, esse raríssimo encontro entre o brasileiro e a natureza, que eu penso que devia ser respeitado como uma libertadora possibilidade de se escapar por um breve momento de um mundo histérico e saturado de signos, torna-se mera extensão da habitual e onipresente histeria.

A caminhada se torna um evento, um show, inclusive com animador. A caminhada-show tem um momento preciso para começar e encerrar, e um programa pensado pelo guia com as “atrações” que merecem a atenção. Não há tempo para sair do programa porque a procissão de caminhantes precisa seguir. O que constatei foi que ninguém, afinal, sai do programa porque infelizmente ninguém tem olhos para enxergar além das escolhas filtradas pelo guia. E a procissão segue em meio a muitas selfies vendendo saúde e infindáveis queixas do sol, do suor e da caminhada de duas horas que já seria impossivelmente longa. Assim, a valiosa chance de dilatar a experiência existencial, de saltar a outra chave de funcionamento mais lenta e profunda porque sem o excesso de estímulos/signos é simplesmente lançada ao chão: os caminhantes brasileiros sequer farejam haver um modo mais silencioso e calmo de existir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário