Caminho pela Andaluzia e
vou entendendo que caminhar nem sempre é o mesmo que caminhar. Ando
por uma montanha, das muitas e belas que a paisagem andaluza possui,
com meu namorado. Ele leva a mochila com nossa água, comida para a
pausa do piquenique, kit simples de primeiros-socorros, nossos
telefones e câmeras. Subo montanhas com custo. Culpo minhas pernas
magras e sem músculos que tremem para arrastar meu corpo para o
alto. Os dois vamos geralmente em silêncio, seja pelo rigor da
subida que nos impede de poder falar e andar simultaneamente, seja
por entendermos que é melhor assim, mesmo nas descidas, quando já
não há tanto esforço físico e poderíamos conversar. É uma
solidão a dois, uma solidão que não é má nem incômoda, mas
morna e agradável.
No meio desta caminhada,
lembro de outras vezes em que caminhei, desta vez no Brasil. Penso
particularmente em duas experiências brasileiras, uma no Parque de
Sete Cidades, no Piauí; outra em Bonito, no Mato Grosso do Sul.
Ambas já aconteceram depois da minha iniciação andarilha na
Europa. Como brasileiro, às vezes mesmo eu constituo a regra e,
neste caso, descobri na Alemanha que eu – como quase todos os meus
conterrâneos – detestava caminhar. Assim, infelizmente, antes da
Europa entrar na minha vida, não fui tão bom para ser capaz de
concluir que caminhar era algo a ser pensado e feito. Ao caminhar no
Piauí ou em Bonito já tinha, portanto, certa experiência europeia
para entender como as duas culturas enxergavam esse mesmo gesto. E vi
que caminhar no Brasil podia ser algo bem diferente.
Primeiro: não se caminha
no Brasil. Logo, quando se caminha se faz algo que é alternativo e
especial. As pessoas que decidem fazê-lo – ao menos foi o que
minhas experiências me revelaram – se vêem como ótimas, afinal
são raras. Vendem uma imagem de consciência ambiental e de estilo
de vida saudável. Longe de perceber, no entanto, que consomem a
caminhada como o fazem com qualquer outro bem material ou imaterial
capaz de somar valor à imagem que desejam vender de si. Pouco
interessa a caminhada e o caminhar. Interessa o que ela contribui
para o embelezamento e enriquecimento da imagem pessoal. Como fazer
academia três vezes por semana ou comer sushi regularmente.
Como não se caminha no
Brasil, não se sabe caminhar nem ter olhos para o exterior e a
paisagem. Essa talvez seja a diferença mais radical que pude
perceber entre europeus e brasileiros: a diferença a respeito da
relação com a paisagem exterior, com a natureza. Diferente
daqueles, nós brasileiros quase sempre fugimos, sem o saber, claro,
de nos relacionarmos com o entorno. A natureza nos parece muito
desejável nas imagens das revistas turísticas com seus verdes
exuberantes, e o Pantanal exerce um fascínio mítico em muitos de
nós. Fascínio porque geralmente permanecerá distante e
irrealizável. Na realidade diária, porém, a paisagem natural que
nos circunda – talvez mesmo a muitos habitantes do Pantanal – nos
exerce pouco ou nenhum apelo, ou sequer é percebida como natureza.
Em casos muito mais tristes, mas bastante comuns, em que a natureza
passa por um momento no tempo a significar, para o brasileiro, uma
evidente oposição entre o meu e o não-meu, entendemos que ela deve
ser controlada. E a única forma de controle que conhecemos é a
supressão. Todas as vezes em que a natureza deixa de ser apenas
inofensiva, de poder ser apenas mentalmente ignorada por nós e passa
a significar algum nível de ameaça às coisas que pensamos ser
“nossas”, entendemos que é chegado o momento da luta. Uma luta
não apenas burra, por não entendermos que o que desejamos dominar
também é “nosso”, como injusta e sangrenta, vencida por nós
com irrisória facilidade por conta do aparato tecnológico à que
apenas nós, humanos, podemos recorrer e o fazemos. Ateamos fogo na
colmeia de abelhas se não a desejamos ali debaixo daquela folha de
bananeira no nosso quintal; desistimos da mangueira e das mangas por
não aceitar dividi-las com os periquitos e cortamos a árvore quando
pensamos que eles se aproveitam além da conta das “nossas”
frutas; matamos a sucuri que comeu “nosso” bezerro; caçamos e
matamos a onça que apenas ainda não fez nada, mas poderia fazer.
Penso que nesta reduzida lista encontrada em minhas lembranças
pessoais, que eu poderia facilmente estender, a imensa maioria de
meus conterrâneos não percebe nada de estranho; não percebe sequer
que há algo acontecendo aqui.
Depois há os casos em que
a natureza é apenas inócua e pode, assim, ser apenas facilmente
esquecida de lado. Nestes casos, agem nossos olhos mentalmente
fechados para o entorno. Como já disse, não temos olhos para a
paisagem, para os espaços amplos, para o longe. Nossos olhos são
para espaços exíguos e fechados, para poucas distâncias, para
paredes, para o que é mais nosso, como a sala onde se come, a casa
onde se vive ou no máximo o quintal onde se faz a festa no fim de
semana. Se viajamos de ônibus, a paisagem que flui na janela pouco
nos interessa ou bem menos que a conversa que tentamos manter ao
telefone, irritados pelas constantes interrupções na conexão. A
paisagem está lá, mas não está porque ela nada significa pra nós.
Não a enxergamos. Não sabemos lê-la como o fazemos com uma
mensagem no whatsapp. Não sabemos o que fazer com ela nem como
reagir.
Por isso na caminhada –
essa rara intermitência para o brasileiro onde ele deixa de ignorar
ou mesmo suprimir o entorno e deve enxergá-lo e mesmo interagir com
ele – a figura do guia surge como quase imprescindível. O guia
deseja curar esses olhos incapazes de enxergar as coisas que estão
para fora das paredes. Ele diz olhe isto, veja aquilo, fotografe.
Sempre as fotos. É estranho, mas sim, é preciso alguém para fazer
o caminhante enxergar a natureza. Mais: enxergar que ela pode ser
interessante e digna da sua atenção. Mas o guia, quase sempre um
pastor charlatão, tampouco entende o silêncio da natureza, e
tentará – impulsionado pelo seu espírito raso, o único que
possui – conferir-lhe os mais estúpidos significados. Ele diz olhe
esta pedra, ela se parece com o trono de um rei. Como se a pedra não
pudesse interessar por se parecer simplesmente a uma pedra. Mais
fotos. Nem guia nem guiados sabem contemplar ou estar em silêncio. O
silêncio os perturba. Assim, esse raríssimo encontro entre o
brasileiro e a natureza, que eu penso que devia ser respeitado como
uma libertadora possibilidade de se escapar por um breve momento de
um mundo histérico e saturado de signos, torna-se mera extensão da
habitual e onipresente histeria.
A caminhada se torna um
evento, um show, inclusive com animador. A caminhada-show tem um
momento preciso para começar e encerrar, e um programa pensado pelo
guia com as “atrações” que merecem a atenção. Não há tempo
para sair do programa porque a procissão de caminhantes precisa
seguir. O que constatei foi que ninguém, afinal, sai do programa
porque infelizmente ninguém tem olhos para enxergar além das
escolhas filtradas pelo guia. E a procissão segue em meio a muitas
selfies vendendo saúde e infindáveis queixas do sol, do suor e da
caminhada de duas horas que já seria impossivelmente longa. Assim,
a valiosa chance de dilatar a experiência existencial, de
saltar a outra chave de funcionamento mais lenta e profunda porque
sem o excesso de estímulos/signos é
simplesmente lançada ao chão: os caminhantes brasileiros sequer
farejam haver um modo mais silencioso e calmo de existir.
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