Séculos depois do meu último post e do blog ser quase devorado pelas traças, tive hoje um desejo de matar as saudades. Desejo de escrever um pouquinho aqui. Lembrei agora da entrevista do Gullar na Bravo. Ele dizendo que o poeta não podia decidir o momento de escrever, mas que era submisso a esse desejo. O poeta submisso à inspiração, submisso a essa vontade insondável que vem e o toma para si. Mas não sou poeta. Só concordo com o Gullar porque também não posso imaginar o poeta sentando-se todos os dias para escrever, pontualmente, como quem sai para um emprego. No mínimo, eu teria uma curiosidade maldosa para ler algo que eu soubesse ter sido escrito numa situação assim.
Vamos à cotidianidade barata, que é o que me interessa hoje. Dizem que Deus ajuda quem cedo madruga. Mas acho que cedo ele deve estar dormindo como, na verdade, deve estar em todas as outras horas do dia também. Quem me ajudou hoje fui eu. Levantei cedo porque a lista de coisas que eu desejava fazer antes de começar, ao meio-dia, na padaria, deixava-me ansioso (o que não é novidade). E eu adoraria realizar essa agenda e ter aquela sensação adorável de dever cumprido que sei ter tão bem porque consigo, como poucos, fracionar-me e crer com todo meu espírito que sou a um só tempo o senhor que ordena e o vassalo que obedece.
In Rainbows no volume máximo no Ipod e coragem para enfrentar a pressa que também tinham todos os motoristas dos carros, dos ônibus, dos caminhõs, das motos, tinha um mundo contra mim. E ele tinha de chegar ao seu destino às 8h da manhã.
Cheguei ao meu primeiro ponto no meio de Reckoner, que pausei e voltaria a ouvir DESDE O INÍCIO pra não desperdiçar a delícia que seria ouvir essa música passando de bike pelo Areião. Entrei na Polícia Técnica Federal com a polêmica já saltando da boca por causa do aviso que S. me dera de que os passaportes só podiam ser pegos após as 14h, coisa que seria IMPOSSÍVEL pra mim. Imagine minha frustração depois do solícito "é só ir até a próxima entrada e retirar!" da recepcionista. Reckoner de novo. Todinha. Bike deslizando quase viva pela calçada acidentada do Hugo, o bosque espalhando luz e sombra no chão, poesia visual.
No Ipasgo tudo muito rápido para o histórico que tenho ali. Depois os raios-x. Catorze, um absurdo. Depois percebi que o absurdo foi não terem me chamado para repetir alguma placa, porque todo mundo ali parecia refazer alguma pelo menos duas vezes. Uma mulher chorou ao retornar à sala de raio-x pela sexta vez. A espera pela revelação deste exame foi a parte mais demorada. Caderninho de alemão na sala de espera, treinar pronúncia, um pouco de loucura. Sentou-se ao meu lado uma fefinha e sua avó. Uns cinco anos. Choroso e com medo da poltrona onde tínhamos de sentar para fazer o exame. A avó, que tinha uma bolsa consigo, sentou o neto no colo e ouvi um tímido "deixa eu usar, vó!", surpresa com tanta subversão, a avó fingiu não ouvir, mas a voz infantil foi muito segura ao pedir pela segunda vez "me dá a bolsa, vó!" e a senhora só pôde explodir "bolsa é coisa de mulher, você não pode!", ainda ouvi um queixoso "mas eu quero..." Foi a parte engraçada da manhã.
Exames pegos. Predict the day do Ladytron pra ir pra casa. Só descida. Uma aventura neste trânsito, um descanso para minhas pernas. Fiz o MILAGRE de poder cortar o cabelo antes de entrar na padaria. Mas não pude almoçar por isso! haha Ah, mas almoçar não estava na minha lista de deveres e a sensação que me visitou no chuveiro enquanto eu lavava as centenas de fragmentos de cabelo que estavam em mim foi de leveza. O escravo conseguira fazer tudo e ainda cuidar de si!
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