Nunca
compro Cds. Não sou alemão, meu negócio é mesmo a pirataria. É
feio – só hoje sei, só hoje após morar na Alemanha admito que a
pirataria é feia – mas é assim. A verdade não se pergunta se é
bonita ou feia, ela é. E meu dinheiro não vai nem pra Cds
nem pra filmes. Geralmente vai pra roupas, com prazer. Que aumenta
conforme aumenta a distância entre o valor que paguei e o valor que o
mercado convencional atribuiu à roupa por mim comprada.
Semana
passada, numa rara conversa com um colega de faculdade, ele me disse –
após ser perguntado se não se sentia oprimido pela proibição de
baixar coisas aqui – que não precisava baixar nada, que ele
comprava tudo, que os filmes não eram caros, que ele gostava de
colecionar – nesse momento ri por dentro lembrando da minha coleção
de mil filmes piratas, só existentes digitalmente no interior do meu
HD. Não, não senti vergonha dela, mas não a
mencionei a ele. Não entenderia. Operamos em sistemas opostos.
Acho Cds caros, ele baratos. Acho um desperdício gastar 17,99€
com um CD, ele desconhece outro caminho para poder fruir o
conteúdo de um.
Apesar
de nunca comprar Cds, decidi hoje ir à Saturn ver que
novidades sonoras rolavam por lá ou mais exatamente ouvir o último
álbum do Patrick Wolf antes de poder baixar ou comprar meu exemplar.
Sim, comprar. Parêntese: O Wolf constitui um caso excepcional e se insere no
exíguo grupo de artistas, no máximo cinco, para o qual reservo comportamentos mais enérgicos e calorosos, como ir aos seus concertos, pedir autógrafos e comprar materais autênticos. Comprar o álbum, porém, com o alto preço que ele possui logo após o lançamento ainda me é difícil.
A
Saturn é uma rede alemã de lojas de eletrônicos e
eletrodomésticos que também oferece filmes e música. Mas meu CD
desejado, claro, ela não pôde me oferecer. Nenhum sinal de que Patrick teria passado por lá. Mal nenhum. Contetei-me em
encenar que eu comprava o último dos Pet Shop Boys, do Massive
Atack, da Fine Frenzy e do Mika, testando os álbuns nos fones de
ouvido da loja onde as músicas se sucediam veloz e irritantemente limitadas
a durações de trinta segundos.
Estou de pé, mochila no chão aos meus pés: se é pra fruir música, sem peso nos ombros! Fones macios sobre as orelhas, alguma música dos Pet SB me faz bater o pé direito ritmadamente no carpete, bom sinal, devia baixar o álbum. Esqueçamos, no entanto, os Cds e as músicas. Percebo haver logo atrás de mim dois monitores de LCD
que exibem um documentário chamado Planeta Congelado.
Cheguei, enfim, ao tema que desejava falar aqui: não de música, mas também não desse documentário, e sim de imagem. Uma cena com um pingüim me fascinou e fisgou para que eu seguisse contemplando um dos
monitores enquanto a alucinada procissão de músicas prosseguia em
meus ouvidos. Um pingüim salta do mar onde até então nadava para
cima do gelo. A câmera, instalada frontalmente a ele, exibe o
momento do salto em close e num slow motion tão
nítido que pensei, e isso é certo, que jamais poderia enxergar
assim na realidade. Gotas d'água se
desprendem do corpo negro do animal, onde eu poderia identificar,
caso houvesse tempo, a menor falha na penugem, e se balançavam no
ar, já soltas, como brilhantes bolhas de sabão onde eu podia enxergar as linhas de seus contornos pulsando e vibrando durante o salto até se arrebentarem
no gelo. A ave desliza com a barriga em minha direção até quase
tocar a câmera. Outra cena deslumbrante se inicia. E outra. E mais
uma. Um cartaz ao lado do monitor alardeia: O Blu-ray é mais nítido
que a realidade.
Eu e
Sontag diríamos que o Blu-ray quer desbancar a realidade. Durante
uma das cenas desse trailer que me deixou atônito, lembrei de minha
leitura de Diante da dor dos outros. Nesse maravilhoso livro,
a norte-americana, analisando a profusão de imagens da dor a que
temos acesso diariamente e que só aumentou ao longo da história –
não apenas devido à ampliação das possibilidades de registro
dessas imagens, mas também devido às novas possibilidades para sua
difusão – conclui que paradoxalmente, apesar de nos sentirmos mais
próximos das realidades dolorosas com que entramos em contato, por
exemplo, todos os dias pelos noticiários, tornamo-nos no fundo e na
realidade mais insensíveis e indiferentes à dor dos outros, porque
indiferentes às imagens que simbolizam e comunicam a dor. Sontag
continua: já vimos tudo, já vimos demais, nada nos foi poupado, já
vimos a face mais horrível da dor e mais nada é capaz de nos
chocar, a imagem perdeu seu poder de choque. Especialmente após o
fatídico 11 de setembro, para a autora, o início oficial da Era da
Impossibilidade do Choque.
O
Blu-ray me fez pensar numa nova versão dessa tese: A beleza, tanto
como a dor, também já não pode chocar ou surpreender, para usar um
vocábulo mais positivo. Enquanto eu contemplava a tela pensando
ouvir a Sontag falando comigo, muitos clientes passavam por ali,
nenhum, porém, se surpreendia com a impossível nitidez daqueles
pingüins. Àquelas pessoas, era como se as imagens não comunicassem
nada, muito menos beleza excessiva. Ninguém as enxergava. Porque
estão em todos os lugares – responderia Sontag. Há o problema da
ecologia das imagens, e ela já começaria com uma nova tese. Já não
há ecologia de imagens: não há qualquer
respeito, parcimônia, hesitação ou limite para seu registro em
qualquer suporte. Elas são onipresentes, superabundantes,
redundantes, promíscuas, prostituídas. E ao que me parece o serão
cada vez mais. O progresso assim o deseja, e não se contém o
progresso – assim pensamos hoje. Se o Blu-ray é possível, ei-lo.
E como tudo se altera tão rápido nesse setor tecnológico, logo a
imagem full-HD receberá duas, três
vezes mais nitidez, até que esses meus olhos, esses meus débeis e
míopes nem possam mais acompanhar. Como se
fascinar com a realidade, hoje, ou depois de tudo o que virá,
se nem mesmo a supernitidez do pingüim exibido em
full-HD é digna de fascínio?
Se perto dela a realidade é esmaecida e escura?
A solução, se houver, parece-me longe de ser simples porque o
caminho que fizemos até aqui não pode ser percorrido para trás até a longínqua era em que o choque era possível.
Ressuscitar o choque ou o fascínio em meio à irreversível presença
imagética do nosso tempo parece exigir a rara habilidade de enxergar para além da
imagem e com instrumentos que não apenas os olhos, e isso para o bem
de nossa própria realidade e da dos outros, seja ela bela ou
horrorosa.
Eu não li a Sontag, mas me lembrei imediatamente da pesquisa de mestrado de um colega, que não li, mas tinha no título "diante da dor dos outros" (plágio ou ignorância? rs!). E o curioso é que o rapaz era fotógrafo criminal e escrevia sobre seu trabalho: fotografar as coisas mais horríveis para os peritos. Para pensar.
ResponderExcluirSábia frase: "o Blu-ray quer desbancar a realidade". Aliás, é o que as tecnologias da imagem tem tentado fazer desde sempre (até mesmo sem se dar conta disso, talvez...)
Então: é tanta imagem rara de Marilyn Monroe no Pinterest, que eu prefiro olhar pras travestis da Rua da Glória, são mais atraentes para os meus olhos entediados, pois "tornamo-nos no fundo e na realidade mais insensíveis e indiferentes (...) às imagens (...)Porque estão em todos os lugares"
Na minha dissertação, sobre moda, quando toquei no termo beleza, recebi da orientadora o seguinte: "acho que beleza não é um termo válido para esse tema"; Assim é que "A beleza, tanto como a dor, também já não pode chocar ou surpreender", já não se trata mais de beleza (nem da feiúra, como o avesso da beleza ou como beleza mesmo... A indiferença do excesso de imagens tem um efeito anestésico: "ninguém as enxergava", embora se proliferem na mesma velocidade dos micróbios sobre a matéria decomposta;
Estou em êxtase, esse é um texto de Teoria da Imagem, você tiraria um dez com ele: "não há qualquer [...] parcimônia, hesitação ou limite para seu registro em qualquer suporte. Elas [as ibagens] são onipresentes, superabundantes, redundantes, promíscuas, prostituídas".
Você que fez filosofia sabe, pfvr, que essa ideia de progresso é uma mentira, uma falácia da razão (pos)moderna: "o progresso assim o deseja", só posso ler cinicamente, com uma verdade válida apenas para O Popular, rs;
Por fim, "enxergar para além da imagem e com instrumentos que não apenas os olhos" é a grande missão, né? Tamo tentando... cada um com suas armas! Mais importante de tudo: identificar a anestesia e a indiferença e reagir critcamente.
Caraca, que texto magnífico! Abraço, paro por aqui, rs!