quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Pingüins supernítidos

Nunca compro Cds. Não sou alemão, meu negócio é mesmo a pirataria. É feio – só hoje sei, só hoje após morar na Alemanha admito que a pirataria é feia – mas é assim. A verdade não se pergunta se é bonita ou feia, ela é. E meu dinheiro não vai nem pra Cds nem pra filmes. Geralmente vai pra roupas, com prazer. Que aumenta conforme aumenta a distância entre o valor que paguei e o valor que o mercado convencional atribuiu à roupa por mim comprada.
 
Semana passada, numa rara conversa com um colega de faculdade, ele me disse – após ser perguntado se não se sentia oprimido pela proibição de baixar coisas aqui – que não precisava baixar nada, que ele comprava tudo, que os filmes não eram caros, que ele gostava de colecionar – nesse momento ri por dentro lembrando da minha coleção de mil filmes piratas, só existentes digitalmente no interior do meu HD. Não, não senti vergonha dela, mas não a mencionei a ele. Não entenderia. Operamos em sistemas opostos. Acho Cds caros, ele baratos. Acho um desperdício gastar 17,99com um CD, ele desconhece outro caminho para poder fruir o conteúdo de um.
 
Apesar de nunca comprar Cds, decidi hoje ir à Saturn ver que novidades sonoras rolavam por lá ou mais exatamente ouvir o último álbum do Patrick Wolf antes de poder baixar ou comprar meu exemplar. Sim, comprar. Parêntese: O Wolf constitui um caso excepcional e se insere no exíguo grupo de artistas, no máximo cinco, para o qual reservo comportamentos mais enérgicos e calorosos, como ir aos seus concertos, pedir autógrafos e comprar materais autênticos. Comprar o álbum, porém, com o alto preço que ele possui logo após o lançamento ainda me é difícil.
 
A Saturn é uma rede alemã de lojas de eletrônicos e eletrodomésticos que também oferece filmes e música. Mas meu CD desejado, claro, ela não pôde me oferecer. Nenhum sinal de que Patrick teria passado por lá. Mal nenhum. Contetei-me em encenar que eu comprava o último dos Pet Shop Boys, do Massive Atack, da Fine Frenzy e do Mika, testando os álbuns nos fones de ouvido da loja onde as músicas se sucediam veloz e irritantemente limitadas a durações de trinta segundos.
 
Estou de pé, mochila no chão aos meus pés: se é pra fruir música, sem peso nos ombros! Fones macios sobre as orelhas, alguma música dos Pet SB me faz bater o pé direito ritmadamente no carpete, bom sinal, devia baixar o álbum. Esqueçamos, no entanto, os Cds e as músicas. Percebo haver logo atrás de mim dois monitores de LCD que exibem um documentário chamado Planeta Congelado. Cheguei, enfim, ao tema que desejava falar aqui: não de música, mas também não desse documentário, e sim de imagem. Uma cena com um pingüim me fascinou e fisgou para que eu seguisse contemplando um dos monitores enquanto a alucinada procissão de músicas prosseguia em meus ouvidos. Um pingüim salta do mar onde até então nadava para cima do gelo. A câmera, instalada frontalmente a ele, exibe o momento do salto em close e num slow motion tão nítido que pensei, e isso é certo, que jamais poderia enxergar assim na realidade. Gotas d'água se desprendem do corpo negro do animal, onde eu poderia identificar, caso houvesse tempo, a menor falha na penugem, e se balançavam no ar, já soltas, como brilhantes bolhas de sabão onde eu podia enxergar as linhas de seus contornos pulsando e vibrando durante o salto até se arrebentarem no gelo. A ave desliza com a barriga em minha direção até quase tocar a câmera. Outra cena deslumbrante se inicia. E outra. E mais uma. Um cartaz ao lado do monitor alardeia: O Blu-ray é mais nítido que a realidade.
 
Eu e Sontag diríamos que o Blu-ray quer desbancar a realidade. Durante uma das cenas desse trailer que me deixou atônito, lembrei de minha leitura de Diante da dor dos outros. Nesse maravilhoso livro, a norte-americana, analisando a profusão de imagens da dor a que temos acesso diariamente e que só aumentou ao longo da história – não apenas devido à ampliação das possibilidades de registro dessas imagens, mas também devido às novas possibilidades para sua difusão – conclui que paradoxalmente, apesar de nos sentirmos mais próximos das realidades dolorosas com que entramos em contato, por exemplo, todos os dias pelos noticiários, tornamo-nos no fundo e na realidade mais insensíveis e indiferentes à dor dos outros, porque indiferentes às imagens que simbolizam e comunicam a dor. Sontag continua: já vimos tudo, já vimos demais, nada nos foi poupado, já vimos a face mais horrível da dor e mais nada é capaz de nos chocar, a imagem perdeu seu poder de choque. Especialmente após o fatídico 11 de setembro, para a autora, o início oficial da Era da Impossibilidade do Choque.
 
O Blu-ray me fez pensar numa nova versão dessa tese: A beleza, tanto como a dor, também já não pode chocar ou surpreender, para usar um vocábulo mais positivo. Enquanto eu contemplava a tela pensando ouvir a Sontag falando comigo, muitos clientes passavam por ali, nenhum, porém, se surpreendia com a impossível nitidez daqueles pingüins. Àquelas pessoas, era como se as imagens não comunicassem nada, muito menos beleza excessiva. Ninguém as enxergava. Porque estão em todos os lugares – responderia Sontag. Há o problema da ecologia das imagens, e ela já começaria com uma nova tese. Já não há ecologia de imagens: não há qualquer respeito, parcimônia, hesitação ou limite para seu registro em qualquer suporte. Elas são onipresentes, superabundantes, redundantes, promíscuas, prostituídas. E ao que me parece o serão cada vez mais. O progresso assim o deseja, e não se contém o progresso – assim pensamos hoje. Se o Blu-ray é possível, ei-lo. E como tudo se altera tão rápido nesse setor tecnológico, logo a imagem full-HD receberá duas, três vezes mais nitidez, até que esses meus olhos, esses meus débeis e míopes nem possam mais acompanhar. Como se fascinar com a realidade, hoje, ou depois de tudo o que virá, se nem mesmo a supernitidez do pingüim exibido em full-HD é digna de fascínio? Se perto dela a realidade é esmaecida e escura? A solução, se houver, parece-me longe de ser simples porque o caminho que fizemos até aqui não pode ser percorrido para trás até a longínqua era em que o choque era possível. Ressuscitar o choque ou o fascínio em meio à irreversível presença imagética do nosso tempo parece exigir a rara habilidade de enxergar para além da imagem e com instrumentos que não apenas os olhos, e isso para o bem de nossa própria realidade e da dos outros, seja ela bela ou horrorosa.

Um comentário:

  1. Eu não li a Sontag, mas me lembrei imediatamente da pesquisa de mestrado de um colega, que não li, mas tinha no título "diante da dor dos outros" (plágio ou ignorância? rs!). E o curioso é que o rapaz era fotógrafo criminal e escrevia sobre seu trabalho: fotografar as coisas mais horríveis para os peritos. Para pensar.

    Sábia frase: "o Blu-ray quer desbancar a realidade". Aliás, é o que as tecnologias da imagem tem tentado fazer desde sempre (até mesmo sem se dar conta disso, talvez...)

    Então: é tanta imagem rara de Marilyn Monroe no Pinterest, que eu prefiro olhar pras travestis da Rua da Glória, são mais atraentes para os meus olhos entediados, pois "tornamo-nos no fundo e na realidade mais insensíveis e indiferentes (...) às imagens (...)Porque estão em todos os lugares"
    Na minha dissertação, sobre moda, quando toquei no termo beleza, recebi da orientadora o seguinte: "acho que beleza não é um termo válido para esse tema"; Assim é que "A beleza, tanto como a dor, também já não pode chocar ou surpreender", já não se trata mais de beleza (nem da feiúra, como o avesso da beleza ou como beleza mesmo... A indiferença do excesso de imagens tem um efeito anestésico: "ninguém as enxergava", embora se proliferem na mesma velocidade dos micróbios sobre a matéria decomposta;
    Estou em êxtase, esse é um texto de Teoria da Imagem, você tiraria um dez com ele: "não há qualquer [...] parcimônia, hesitação ou limite para seu registro em qualquer suporte. Elas [as ibagens] são onipresentes, superabundantes, redundantes, promíscuas, prostituídas".
    Você que fez filosofia sabe, pfvr, que essa ideia de progresso é uma mentira, uma falácia da razão (pos)moderna: "o progresso assim o deseja", só posso ler cinicamente, com uma verdade válida apenas para O Popular, rs;
    Por fim, "enxergar para além da imagem e com instrumentos que não apenas os olhos" é a grande missão, né? Tamo tentando... cada um com suas armas! Mais importante de tudo: identificar a anestesia e a indiferença e reagir critcamente.

    Caraca, que texto magnífico! Abraço, paro por aqui, rs!

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