A f r o n t a
Pouco antes de sair pra jantar avaliou o dia até ali e admitiu
desgostoso que ele devia ter sido melhor. Ao ter esses pensamentos,
estava de pé, já vestido, perscrutando sua imagem no espelho do
banheiro. Com a mão direita empurrou o cabelo pra trás e manteve os
fios sob a palma, revelando a fronte, onde ele examinava, há
semanas, confrangido e impotente, o súbito recuo dos pelos das suas
têmporas. Sim, era seu dever ter produzido quase artesanalmente um
dia especial para o namorado que fazia aniversário. Apenas um dia no
ano, era difícil fazê-lo funcionar? Mas as coisas gostam de escapar
do controle, suspirou treinando resignação.
No começo da manhã, antes que o companheiro saísse da cama,
insuflou-se uma energia que ele nunca conhecia assim logo depois de
se despertar e, acelerado, deixou o quarto – possuído pela
responsabilidade de oferecer ao aniversariante o dia ideal que ele
merecia – e foi arranjar na mesa da sala de jantar uns poucos
presentes, na verdade, apenas o seu e o da sogra, que chegara dois
dias antes pelo correio. Foi então que o dia começou a fluir
sozinho, fora de qualquer agenda ideal que ele pudesse imaginar. A
vela escolhida por ele para celebrar a data, tal como um fogo de
artifício em miniatura, indomável e destruidora, como ele só
depois saberia, liberou faíscas incandescentes no ar sobre a mesa e
queimou a toalha de família que o namorado herdara da avó, que
recebera, por sua vez, das mãos da mãe que a bordara mais de um
século atrás numa Alemanha que já não existe. O aniversariante,
que nesse momento já se sentava numa das cadeiras em volta da mesa e
contemplava um pouco sonolento o crepitar da vela, terminou de
despertar de súbito quando o absurdo dos buracos negros na toalha
branca o sugou para a realidade. Tentou sorrir, perplexo, quase a
chorar. A camisa recebida de presente do parceiro incendiário
remanesceu intacta sobre a mesa como signo da paralisia emocional que
o incidente causara ao namorado.
No início da tarde foi ao correio. Pela primeira vez na vida enviava
um pacote para a Ásia, uma polo que vendera no Ebay. Quatro pessoas,
dois homens e duas mulheres, atendiam os clientes. Ele se lembrou do
rosto de um dos homens e soube imediatamente que não gostaria de ser
atendido por ele. Não pôde precisar nenhuma situação de onde essa
indisposição tivesse surgido, mas olhando para o rosto do homem
desde a fila, lembrou-se de impaciência, de menosprezo
e de sarcasmo. Esse mesmo rosto cuspiu em
alemão “o próximo”. Que era ele. Disse um “bom dia” firme e
bem articulado ao entregar o gordo envelope com a polo ao balconista.
Sua cabeça se abaixou um pouco em direção ao envelope que ele,
agora, tinha nas mãos, mas era difícil decidir se esse ínfimo
gesto era uma resposta ao cumprimento ou se o atendente já se
ocupava com seu trabalho para despachar o rapaz o mais rápido da sua
frente. Não disse nada, começou a digitar com rapidez as
informações do pacote. O rapaz levou a mão direita discretamente
ao bolso em busca da carteira. Não desejava incitar tampouco
experimentar a impaciência desse homem, que lhe disse, agora, algo,
que ele não pôde entender porque tentava lembrar que moedas tinha
na carteira. O céu se fechou abrupto sobre sua cabeça, vaticinando
tempestade. Detestava situações imprevistas, tanto mais situações
imprevistas em alemão. Vasculhou apressado sua mente para ver
se alguma palavra dita pelo balconista permanecera ali após ser
surpreendido em seus pensamentos matemáticos. Encontrou “assinatura”
e viu uma caneta estendida diante de si por uma mão que já começava
a tremer, impaciente. Assinou, precipitado, um garrancho no papel
branco do pacote, e soltou, aliviado, a caneta sobre o balcão,
preparando-se, mais uma vez, para buscar o dinheiro no bolso, cumprir
sua última obrigação e sumir dali, mas a mão que antes lhe
estendeu a esferográfica teve um espasmo e bateu convulsa sobre o
pacote. Do rosto vermelho de agitação do atendente saiu um bloco de
palavras que o rapaz tentou, aflito, separar enquanto o crescente
calor da ignomínia começou a lhe arder no peito e na face.
Entendeu, mais uma vez, “assinatura” e uma nova palavra: “fita
adesiva”. Pôs-se a assinar, agora, sobre a fita adesiva,
perguntando-se, humilhado, quantas das pessoas da fila atrás dele
assistiam ao seu ultraje, mas a mão do homem voou voraz sobre a sua
e lhe tomou a caneta. Da cabeça, voou um novo bloco de palavras ou o
mesmo de antes. O jovem não pôde diferenciar porque, nesse momento,
por já ter medo do homem e por ter um ardor a percorrer todo o seu
tronco, ocupava-se em dominar os sinais corpóreos que poderiam
denunciar o quão ferido ele se sentia. Só pôde perceber que as
palavras saíram com mais ira e impaciência, acompanhadas por uma
nova convulsão mais intensa da mão. Não, não havia ninguém na
fila que pudesse não perceber o que se passava com ele no balcão,
concluiu sendo invadido por mais calor e umidade. Buscou ávido por
uma nova palavra antes que se desvanecessem no ar, talvez aquela que
o conduzisse ao gesto correto, impacientemente esperado pelo
balconista e com o poder de por fim à sua tempestade biliar.
Encontrou uma até então despercebida: “tranversalmente”. Sua
mão tremia até o ponto de quase não poder assinar quando segurou a
esferográfica pela terceira vez temendo que a mão do outro
explodisse como bomba sobre a sua, mas confiou ter, enfim,
compreendido o gesto esperado e assinou transversalmente um
garrancho que começava sobre o papel e terminava sobre a fita
adesiva, um garrancho que nem de longe se parecia com sua
assinatura real, mas era transversal, era sobre o papel,
era sobre a fita, e isso
parecia ser tudo o que importava. Foi como água sobre brasa
incandescente. O homem delineou um sorriso que não desejava ser mais
que ironia e desprezo, puxou, calado, o envelope para si e voltou a
digitar. A crepitação de antes foi substituída pelo silêncio do
fogo recém-afogado, um silêncio que de um lado do balcão,
significava se restabelecer das próprias cólera e impaciência e,
do outro, do medo e da injúria. De modo algum, e em nenhum dos
lados, esse silêncio já era sossego. Os dois ainda compartilharam
por árduos minutos um ar rançoso e um mutismo pesado, cheio da
memória da recente tempestade. O rapaz pensou em falar, ensaiou
mentalmente perguntar ao homem se ele sabia o que era começar depois
de adulto uma vida em outra língua, se ele sabia que sua cólera só
produzia ódio ou medo nas pessoas, se ele realmente julgava por bem
ter uma multidão de pessoas que lhe nutriam ódio ou medo. Pensou
tudo isso tentando dominar uns espasmos que começaram no interior do
seu nariz e no lábio inferior. O ardor, antes no tronco, subiu à
cabeça como febre de revolta que ele logo entendeu que se
materializaria no fluxo de um choro, que ele, pelo menos ali,
firmemente impediria. Bastava de humilhação. Não falou nada do que
ensaiou, temeu ser tomado por psicopata pelo único e verdadeiro
psicopata entre os dois. Isso seria demais. Pagou e respirou serenado
no início de um contentamento por poder finalmente deixar de
contemplar aquele rosto e de dominar os espasmos que ocorriam no seu corpo. Fora
do correio, do lado de sua bicicleta, antes de subir e pedalar pra
casa, consentiu que três lágrimas percorressem, mornas, sua face,
mas sem saber bem o porquê, mudou subitamente de ideia: não era
mais pra chorar. Segurou firme no selim para impedir o iminente
fluxo, deixou que a brisa varresse sua febre, subiu na bicicleta e
foi.
Em casa foi direto pro computador,
inventando tarefas, evitando o namorado pelo menos até o jantar de
aniversário, com amigos. Conhecia tanto a tentação de partilhar
histórias com ele como a sugestão do bom senso a não partilhar
essa história do correio para não entristecê-lo um pouco mais
depois da história da toalha. Melhor distância, pensou. Antes de ir
pro banho, porém, e ainda invadido pela lembrança do correio,
entendeu que precisava se expurgar dessa memória e que só falando é
que o poderia. Foi para a sala onde trabalhava o namorado decidido a
prescindir de todo bom senso. Narrou tudo, reviveu as emoções
difíceis. Dos olhos fluíram lágrimas, finalmente livres, como os
rios que só sabem correr. Expurgou-se e foi pro banho com os olhos
vermelhos e o coração pacificado. Pouco antes de sair pra
jantar avaliou o dia até ali e admitiu desgostoso que ele devia ter
sido melhor. Mas para todas as coisas maiores que ele, que fugiam de
seu controle, de seus planos e de seus desejos, havia a fresca
alegria de ter um parceiro, poucos mas bons amigos e um tenro pernil
de cordeiro que dali a pouco comeria. Ao ter esses pensamentos,
estava de pé, já vestido pra sair, perscrutando sua imagem no
espelho do banheiro.
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