domingo, 26 de maio de 2013

Afronta

A f r o n t a
 
 
Pouco antes de sair pra jantar avaliou o dia até ali e admitiu desgostoso que ele devia ter sido melhor. Ao ter esses pensamentos, estava de pé, já vestido, perscrutando sua imagem no espelho do banheiro. Com a mão direita empurrou o cabelo pra trás e manteve os fios sob a palma, revelando a fronte, onde ele examinava, há semanas, confrangido e impotente, o súbito recuo dos pelos das suas têmporas. Sim, era seu dever ter produzido quase artesanalmente um dia especial para o namorado que fazia aniversário. Apenas um dia no ano, era difícil fazê-lo funcionar? Mas as coisas gostam de escapar do controle, suspirou treinando resignação.
 
No começo da manhã, antes que o companheiro saísse da cama, insuflou-se uma energia que ele nunca conhecia assim logo depois de se despertar e, acelerado, deixou o quarto – possuído pela responsabilidade de oferecer ao aniversariante o dia ideal que ele merecia – e foi arranjar na mesa da sala de jantar uns poucos presentes, na verdade, apenas o seu e o da sogra, que chegara dois dias antes pelo correio. Foi então que o dia começou a fluir sozinho, fora de qualquer agenda ideal que ele pudesse imaginar. A vela escolhida por ele para celebrar a data, tal como um fogo de artifício em miniatura, indomável e destruidora, como ele só depois saberia, liberou faíscas incandescentes no ar sobre a mesa e queimou a toalha de família que o namorado herdara da avó, que recebera, por sua vez, das mãos da mãe que a bordara mais de um século atrás numa Alemanha que já não existe. O aniversariante, que nesse momento já se sentava numa das cadeiras em volta da mesa e contemplava um pouco sonolento o crepitar da vela, terminou de despertar de súbito quando o absurdo dos buracos negros na toalha branca o sugou para a realidade. Tentou sorrir, perplexo, quase a chorar. A camisa recebida de presente do parceiro incendiário remanesceu intacta sobre a mesa como signo da paralisia emocional que o incidente causara ao namorado.
 
No início da tarde foi ao correio. Pela primeira vez na vida enviava um pacote para a Ásia, uma polo que vendera no Ebay. Quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, atendiam os clientes. Ele se lembrou do rosto de um dos homens e soube imediatamente que não gostaria de ser atendido por ele. Não pôde precisar nenhuma situação de onde essa indisposição tivesse surgido, mas olhando para o rosto do homem desde a fila, lembrou-se de impaciência, de menosprezo e de sarcasmo. Esse mesmo rosto cuspiu em alemão “o próximo”. Que era ele. Disse um “bom dia” firme e bem articulado ao entregar o gordo envelope com a polo ao balconista. Sua cabeça se abaixou um pouco em direção ao envelope que ele, agora, tinha nas mãos, mas era difícil decidir se esse ínfimo gesto era uma resposta ao cumprimento ou se o atendente já se ocupava com seu trabalho para despachar o rapaz o mais rápido da sua frente. Não disse nada, começou a digitar com rapidez as informações do pacote. O rapaz levou a mão direita discretamente ao bolso em busca da carteira. Não desejava incitar tampouco experimentar a impaciência desse homem, que lhe disse, agora, algo, que ele não pôde entender porque tentava lembrar que moedas tinha na carteira. O céu se fechou abrupto sobre sua cabeça, vaticinando tempestade. Detestava situações imprevistas, tanto mais situações imprevistas em alemão. Vasculhou apressado sua mente para ver se alguma palavra dita pelo balconista permanecera ali após ser surpreendido em seus pensamentos matemáticos. Encontrou “assinatura” e viu uma caneta estendida diante de si por uma mão que já começava a tremer, impaciente. Assinou, precipitado, um garrancho no papel branco do pacote, e soltou, aliviado, a caneta sobre o balcão, preparando-se, mais uma vez, para buscar o dinheiro no bolso, cumprir sua última obrigação e sumir dali, mas a mão que antes lhe estendeu a esferográfica teve um espasmo e bateu convulsa sobre o pacote. Do rosto vermelho de agitação do atendente saiu um bloco de palavras que o rapaz tentou, aflito, separar enquanto o crescente calor da ignomínia começou a lhe arder no peito e na face. Entendeu, mais uma vez, “assinatura” e uma nova palavra: “fita adesiva”. Pôs-se a assinar, agora, sobre a fita adesiva, perguntando-se, humilhado, quantas das pessoas da fila atrás dele assistiam ao seu ultraje, mas a mão do homem voou voraz sobre a sua e lhe tomou a caneta. Da cabeça, voou um novo bloco de palavras ou o mesmo de antes. O jovem não pôde diferenciar porque, nesse momento, por já ter medo do homem e por ter um ardor a percorrer todo o seu tronco, ocupava-se em dominar os sinais corpóreos que poderiam denunciar o quão ferido ele se sentia. Só pôde perceber que as palavras saíram com mais ira e impaciência, acompanhadas por uma nova convulsão mais intensa da mão. Não, não havia ninguém na fila que pudesse não perceber o que se passava com ele no balcão, concluiu sendo invadido por mais calor e umidade. Buscou ávido por uma nova palavra antes que se desvanecessem no ar, talvez aquela que o conduzisse ao gesto correto, impacientemente esperado pelo balconista e com o poder de por fim à sua tempestade biliar. Encontrou uma até então despercebida: “tranversalmente”. Sua mão tremia até o ponto de quase não poder assinar quando segurou a esferográfica pela terceira vez temendo que a mão do outro explodisse como bomba sobre a sua, mas confiou ter, enfim, compreendido o gesto esperado e assinou transversalmente um garrancho que começava sobre o papel e terminava sobre a fita adesiva, um garrancho que nem de longe se parecia com sua assinatura real, mas era transversal, era sobre o papel, era sobre a fita, e isso parecia ser tudo o que importava. Foi como água sobre brasa incandescente. O homem delineou um sorriso que não desejava ser mais que ironia e desprezo, puxou, calado, o envelope para si e voltou a digitar. A crepitação de antes foi substituída pelo silêncio do fogo recém-afogado, um silêncio que de um lado do balcão, significava se restabelecer das próprias cólera e impaciência e, do outro, do medo e da injúria. De modo algum, e em nenhum dos lados, esse silêncio já era sossego. Os dois ainda compartilharam por árduos minutos um ar rançoso e um mutismo pesado, cheio da memória da recente tempestade. O rapaz pensou em falar, ensaiou mentalmente perguntar ao homem se ele sabia o que era começar depois de adulto uma vida em outra língua, se ele sabia que sua cólera só produzia ódio ou medo nas pessoas, se ele realmente julgava por bem ter uma multidão de pessoas que lhe nutriam ódio ou medo. Pensou tudo isso tentando dominar uns espasmos que começaram no interior do seu nariz e no lábio inferior. O ardor, antes no tronco, subiu à cabeça como febre de revolta que ele logo entendeu que se materializaria no fluxo de um choro, que ele, pelo menos ali, firmemente impediria. Bastava de humilhação. Não falou nada do que ensaiou, temeu ser tomado por psicopata pelo único e verdadeiro psicopata entre os dois. Isso seria demais. Pagou e respirou serenado no início de um contentamento por poder finalmente deixar de contemplar aquele rosto e de dominar os espasmos que ocorriam no seu corpo. Fora do correio, do lado de sua bicicleta, antes de subir e pedalar pra casa, consentiu que três lágrimas percorressem, mornas, sua face, mas sem saber bem o porquê, mudou subitamente de ideia: não era mais pra chorar. Segurou firme no selim para impedir o iminente fluxo, deixou que a brisa varresse sua febre, subiu na bicicleta e foi.
 
Em casa foi direto pro computador, inventando tarefas, evitando o namorado pelo menos até o jantar de aniversário, com amigos. Conhecia tanto a tentação de partilhar histórias com ele como a sugestão do bom senso a não partilhar essa história do correio para não entristecê-lo um pouco mais depois da história da toalha. Melhor distância, pensou. Antes de ir pro banho, porém, e ainda invadido pela lembrança do correio, entendeu que precisava se expurgar dessa memória e que só falando é que o poderia. Foi para a sala onde trabalhava o namorado decidido a prescindir de todo bom senso. Narrou tudo, reviveu as emoções difíceis. Dos olhos fluíram lágrimas, finalmente livres, como os rios que só sabem correr. Expurgou-se e foi pro banho com os olhos vermelhos e o coração pacificado. Pouco antes de sair pra jantar avaliou o dia até ali e admitiu desgostoso que ele devia ter sido melhor. Mas para todas as coisas maiores que ele, que fugiam de seu controle, de seus planos e de seus desejos, havia a fresca alegria de ter um parceiro, poucos mas bons amigos e um tenro pernil de cordeiro que dali a pouco comeria. Ao ter esses pensamentos, estava de pé, já vestido pra sair, perscrutando sua imagem no espelho do banheiro.

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